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Vera Magalhães entrevistada por Pedro Dória

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Vera Magalhães foi entrevistada por Pedro Dória em maio de 2020, antes ainda da saída do então ministro da Saúde Nelson Teich.

Teve um ponto da entrevista que gostei muito, quando Vera lembra que Lula foi autor de frases com conteúdo tão ou mais machistas que o próprio Bolsonaro e que se Bolsonaro tivesse proferido essas expressões como “grelo duro” entre outros, haveria gritaria geral da imprensa esquerdista e dos feministas, o que não houve no tempo do PT. Deixou-se passar quase em branco.

Ainda com Teich no Ministério da Saúde, tendo já perdido Sérgio Moro da equipe, Bolsonaro se isola cada vez mais.

Tudo isso ocorre antes de Bolsonaro declarar-se infectado pela covid em julho. Vera entende que o enfrentamento da covid através de um isolamento meia boca, com o esforço de governadores sabotado por Bolsonaro, vá levar o Brasil a uma triste marca de 300 mil mortos pela doença.

A comparação que Pedro faz com os anos 1920-1930 e os dias atuais é que a pandemia veio parar na conta da Direita, não era a Esquerda a estar no poder quando a pandemia, que provoca e provocará uma crise sem precedentes, vai cair no colo de Bolsonaro.

Pobre Brasil, precisava ter tanta desgraça para ter a sorte de não ter Bolsonaro perpetuado no poder talvez como potencial futuro ditador.

O estilo da transcrição foi a editada, sem negritar as entonações. Espero que você goste de ler, a lucidez e o comedimento imparcial foram marcantes em Vera Magalhães. Boa leitura.

A leitura é pelo menos 2 vezes mais rápida que a escuta e o índice de retenção é turbinado. Você pode também marcar e copiar trechos para futuro estudo ou compartilhamento. Seu conteúdo ficaria assim, se você encomendasse uma transcrição editada para blogueiros na www.transcricoes.com.br, você pode escrever para contato@transcricoes.com.br e saber mais.

[207201] Conversas com o Meio Vera Magalhães_4xXXH1XSEKI (71,1 min)

#Bolsonaro #Moro #NelsonTeich

(início da transcrição) [00:00:00]

Pedro Dória (Meio): Minha convidada dessa semana é uma das mais importantes vozes da cobertura do jornalismo político brasileiro nesse momento: Vera Magalhães. Vera é colunista, principal colunista político do jornal O Estado de São Paulo, que é o mais tradicional jornal brasileiro. Ela é uma das editoras do BR Político, que é um dos mais bem informados sites sobre política que existem hoje no Brasil, aliás eu recomendo muitíssimo a leitura diária do BR Político. Ela é âncora do Roda Viva, que não é só o mais importante programa de entrevistas da televisão brasileira, é também o mais tradicional. Então, com todo esse universo ao redor, é absolutamente impossível você ser uma pessoa bem informada sobre política no Brasil hoje sem ser um leitor ou um expectador frequente da Vera, porque muitas vezes é através dela que chega a notícia. Existem alguns motivos para ter convidado a Vera nesse momento. Um deles é porque tinha um gancho, como a gente diz na imprensa, uma boa desculpa. Ela acabou de relançar o site dela no YouTube, onde ela está começando a realizar lives e conversas a respeito de política e então tinha um bom momento ali. (Vera Magalhães no YouTube) Mas existe outra razão. Muito dessas Conversas com o Meio têm sido com cientistas políticos e aí o foco é muito em política. É evidente que uma conversa com a Vera é também uma conversa sobre política, porque não tem como não ser, mas eu queria fazer uma conversa sobre jornalismo. A gente na imprensa tem conversado pouco abertamente a respeito do exercício desse ofício nosso. E das dificuldades que são de lidar com um governo tão inacreditavelmente agressivo com a imprensa. Como é que é isso pessoalmente? Como é que isso impacta o trabalho? A Vera, sendo uma das mais importantes vozes do jornalismo político, é também de longe uma das figuras mais atacadas pelo governo de Jair Bolsonaro. E atacada de forma torpe. Então, para uma conversa sobre jornalismo, para uma conversa sobre o momento político que o Brasil vive, minha amiga Vera Magalhães.

(♫) [00:02:46]

Pedro Dória (Meio): Vera Magalhães, muito obrigado por ter aceitado o convite. [00:02:59]

Vera Magalhães: Olá, Pedro Dória, é um prazer para mim. Eu sou assinante do Meio, entusiasta do Meio e essas conversas que você tem feito são muito bacanas, muito esclarecedoras e é um privilégio para mim aqui estar com você.

Pedro Dória (Meio): Não, isso é gentileza sua e a admiração jornalística, você sabe que é mútua. O pessoal, a gente não precisa nem falar. Vera, deixa eu começar falando sobre jornalismo. Eu tenho conversado muito com cientistas políticos, a conversa acaba sendo por aquele ângulo de como é que a ciência política vê a conjuntura e tudo mais. Agora, a impressão que eu tenho é a seguinte: que a gente entrou num vórtex qualquer em 2013 e a gente não para de trabalhar desde então, e só vai piorando (acha graça). Você tem impressão similar, ou não? Porque 2013 é meio que um marco, de repente vira um redemoinho, uma crise continuada. [00:04:07]

A crise desde As Jornadas de 2013, a Lava Jato e as redes sociais na reação da sociedade na eleição de Jair Bolsonaro

Vera Magalhães: Eu acho que sim, Pedro. No fim do ano, você há de lembrar porque você também é colunista do Estadão, a gente foi instado a escrever sobre o fato político da década ali. E eu citei as Jornadas de 13 como meu fato político da década, porque eu acho que ali é realmente um marco inicial dessa era que a gente está vivendo, os historiadores como você, também têm uma incursão nos ensaios historiográficos, vocês vão mapear isso no futuro, você ainda há de escrever o seu 2013.

(riso) [00:04:43]

Vera Magalhães: E com os anos aí que você já escreveu. Acho que sim, e acho que dali por diante, a gente abriu uma caixa de Pandora da falsa ira aos males do mundo e os males da corrupção. Porque veio na esteira de 2013 a Lava Jato, e ela mexeu num escândalo muito grande de fato, não dá para a gente também em virtude do que aconteceu depois, que foi a eleição do Bolsonaro, minimizar o que a Lava Jato descobriu porque era muito significativo, muito grande. Mas dali nasceu desses dois movimentos, 2013 e Lava Jato, a meu ver, nasceu a ojeriza política que nos trouxe a esse lugar que nós estamos hoje. Não gosto quando se fala criminalização da política, porque não é disso que se trata, foram cometidos crimes efetivamente ali. Se houve criminalização da política, foi por parte dos próprios políticos, mas isso desencadeou um natural processo de ojeriza à política por parte da Sociedade, quando deveria, se a gente fosse uma sociedade mais politicamente desenvolvida e madura, a gente entenderia que aquilo foi um momento que precisava ser punido, mas que não se poderia estigmatizar a prática da política como um todo. Então eu acho que isso explica muitos dos desdobraomentos do que houve, inclusive a eleição do Bolsonaro. E esse lugar em que a gente está aí, o fato de que o jornalismo também foi dragado para esse redemoinho. Eu acho que não estava atento a nenhum dos movimentos, a aquela situação difusa que havia em 2013 que desencadeou aqueles movimentos com aquele grau de violência que a gente viu e de ideias meio apopléticas (apoplexia: sangra mento de órgãos internos) não muito encadeadas, não estava preparado para cobrir a Lava Jato mesmo já tendo passado pelo Mensalão. Então a gente acho que muitas vezes ficou muito nas mãos dos investigadores, sem uma linha de investigação própria, e também não percebeu que aquilo deu nisso, que aquilo daria no Bolsonaro. Acho que esse link de que era inexorável que aquele encadeamento de fatos desse no Bolsonaro não foi percebido. A gente achou que na hora h iam prevalecer aqueles dogmas de muito tempo de TV, o marketing político iam fazer a diferença e ia dar uma eleição do establishment. A gente poderia ter pressentido que não seria isso se a gente tivesse acompanhado mais as redes sociais, tivesse mapeado esses movimentos bolsonaristas que já eram fortes muito antes da eleição, e a gente deixou correr solto. Então, acho que a gente trabalhou muito, mas foi um trabalho meio a reboque dos fatos e não antecipando os fatos, não sei se você concorda comigo.

Pedro Dória (Meio): Eu tenho uma impressão similar, embora não em nossa defesa, mas só como constatação, os políticos tradicionais também foram perceber muito tarde, mais ou menos quando nós percebemos. O cenário, ninguém estava vendo, até o momento que ali na campanha eleitoral de 2018 começou a ficar consistentemente mais evidente, mas se você for lembrar, no 1º semestre de 2018 ainda se falava muito de que o Alckmin tinha feito uma base com uma capilaridade imensa, que ia ter muito tempo de televisão, que seria por isso um candidato muito forte e a campanha do Alckmin no início foi um fiasco. Quer dizer, não acho que seja só nós, jornalistas. Nós estávamos cegos como todo o resto (acha graça). [00:08:46]

Mensalão, reeleição de Lula, o crescimento da Direita no mundo

Vera Magalhães: É, exato. O que eu acho que aconteceu é que a gente, o que é normal em análise política, em análise sociológica, análise histórica, você tem que partir de algumas histórias do passado para tentar entender o presente. E a gente tentou entender o efeito que 2013 e a Lava Jato teriam sobre as eleições com base no que havia sido 2006 e o Mensalão. A gente teve o mensalão, foi aquele estardalhaço, os jornais naquela época, a imprensa ainda era muito proativa, muitas das descobertas vieram primeiro na imprensa para depois passar na CPI e parar no Supremo. A gente achou que naquele momento, apesar de tudo que se viu, o Lula foi reeleito com sobra, e fez o segundo mandato ainda mais popular, que a corrupção não era um fator decisivo em eleições. Quantas análises a gente leu a esse respeito? E a gente até escreveu eventualmente, sem perceber que uma chave tinha sido virada e aí acho que tem um contexto internacional também que ajuda a entender esse surgimento de políticos antiestablishment, se é que pode chamar, e o ressurgimento da Direita em vários lugares do mundo. Esses também são aspectos que ajudam a fomentar um novo público, esse público bolsonarista que é moralista, se diz conservador, embora seja um conservadorismo em bases que os conservadores (acha graça) tradicionais quase cortam os pulsos. E é intolerante com a corrupção, embora mais tolerantes com outras questões mais complicadas, e enfim, a gente achou que a regra de 2006 prevaleceria em 2018 e não aconteceu. Mesmo em 2014 a Dilma foi reeleita, já tinha os inícios da Lava Jato, então eu acho que a gente minimizou o efeito que tudo isso teria, mas enfim, eu acho que hoje em dia a gente, depois de passar um tempo patinando em como seria cobrir esse novo estado de coisas, essa nova política, a gente está aprendendo a fazer e eu acho que o jornalismo está vivendo uma onda de melhora na sua atuação depois desse período meio barata tonta.

Pedro Dória (Meio): (…) Tem um outro aspecto no debate. Tem um segundo aspecto no debate a respeito da imprensa que não começa propriamente em 2013, começa um pouco antes, mas começa, se torna a partir de 2013 muito intenso, que é essa coisa, a turma do PT nos chamava de imprensa golpista, os bolsonaristas nos chamam de extrema imprensa. Mas no final das contas é exatamente a mesma tática que é um troço de você atribuir à imprensa uma intenção terceira, no caso do PT atribuir uma intenção política, como se a imprensa fosse um partido político. No caso do bolsonarismo é ver a imprensa como um extremo político (acha graça). Mas no fim das contas é tentar colocar a imprensa como se a imprensa fosse um partido político que estivesse na disputa política junto com outros partidos, junto com outros políticos, para desacreditar a imprensa. Isso é uma coisa que durante pelo menos metade da primeira década do século, durante os anos 90-80, nunca se fez uma campanha assim, tão extensa de um espectro ou outro da política contra a imprensa. Como é que você percebe isso? [00:12:54]

O papel da imprensa na redemocratização, a reação de Lula às denúncias da imprensa e os novos mecanismos do bolsonarismo contra a imprensa

Vera Magalhães: Eu acho que é isso, você falou das décadas de 1980-90 que ainda são ecos da redemocratização. E a imprensa teve um papel muito grande na redemocratização, aqueles eram tempos em que até os ex-Arena, o PDS e o PFL procuravam se mostrar como democratas, você não tinha espaço para uma política que negasse alguns dos pilares da democracia. A imprensa naquele momento era um pilar muito forte, porque tinha tido um papel importante tanto de ser censurada, de ser calada na ditadura, e importante para pregar Diretas Já, a volta da democracia. Então eu acho que ali a imprensa estava em alta, era politicamente incorreto reclamar da imprensa mesmo quando você tinha vontade, no governo Fernando Henrique (governo FHC 1995-2003) não foram poucos os episódios em que a imprensa foi dura com ele, mostrou problemas, mostrou a compra de votos pela reeleição, mostrou a planilha de caixa 2 da campanha dele, mostrou escândalo SIVAM, enfim a gente pode passar um tempo aqui listando. Mas ele tinha que ser mais comedido por ser um sociólogo, por ser ele próprio fruto da campanha pela volta à democracia. Então eu acho que também por natureza, sejamos justos. Eu acho que ele tem uma natureza mais entendedora do papel da imprensa. Depois disso, depois principalmente do caso Waldomiro (Waldomiro Diniz) e do caso Mensalão, o Lula que tinha tido um bom relacionamento com a imprensa ao longo da construção do PT da construção da sua imagem, entendeu, enxergou esse caminho de criar um contraponto com a imprensa como um caminho para se defender das acusações de melsaão, aloprados, também foi uma sequência muito grande de baques ali no petismo. E eu acho que o Franklin Martins ajudou a construir essa narrativa naquela ocasião do PIG, o Partido da Imprensa Golpista. O que a gente tem hoje é uma coisa, a meu ver, muito exacerbada em relação a aquilo. Porque alguns dos elementos são comuns, você financiar blogs, ou você fomentar a existência de veículos, para se contrapor à grande imprensa. Mas o grau de violência, a personalização dos ataques, o componente misógino/machista, componentes de ameaça muito claros assim, muito extensivos, esses são elementos unicamente do bolsonarismo. Eu acho que quando se fala em falsa assimetria, que a gente muitas vezes comete, eu sou um pouco “tem bode nessa expressão”, porque eu acho que as assimetrias não são falsas. Mas neste caso, se a gente tiver de graduada intensidades, pelo menos segundo a minha experiência, eu apanhei muito do petismo e apanho muito agora, tem um grau de autoritarismo, de violência, de coordenação e principalmente de ataque pessoal que não havia tanto no petismo. Também as redes sociais não eram tão fortes naquela ocasião. Esse é um outro aspecto que ajuda a entender, não sei se o petismo {Rede Vivo} [00:16:17] não exploraria os mesmos mecanismos e instrumentos do bolsonarismo, mas em relação às duas experiências concretas, eu vejo hoje além da coisa do uso das fake news e da desinformação, ser muito mais disseminada hoje em dia do que era.

Pedro Dória (Meio): Você citou uma coisa que eu queria explorar um pouco, que é a questão da misoginia (s.f. Ódio ou aversão às mulheres), porque isso é um traço muito nítido do bolsonarismo, e minha impressão é que eu até consigo enxergar, se fosse o PT hoje, eu até consigo enxergar que por conta do crescimento da relevância das redes sociais pudesse ser uma campanha ainda mais agressiva do que foi. Eu não consigo enxergar o PT misógino. O movimento feminista é forte demais lá dentro para que não haja um alerta imediato, e a misoginia é muito clara dentro do bolsonarismo porque atacados, Vera, somos todos. Agora, o tipo de ataque que as mulheres sofrem é muito diferente do ataque que os homens sofrem. E nesse ambiente, você, nossa colega Patrícia Campos Mello da Folha de S.Paulo são os principais alvos de uns ataques que vão além do pessoal. Você tem os ataques pessoais mas você tem agressões que é aquela coisa mais vil, mais baixa, mais canalha. Eu queria que você falasse um pouco sobre a questão da misoginia, mas eu queria que você falasse um pouco também da vida pessoal com isso, como é que é trabalhar num ambiente desses? [00:18:18]

Misogenias de Lula e Bolsonaro na imprensa e na internet

Vera Magalhães: Então, vou trazer um pouquinho também de um resgate, de novo, dos tempos do PT, para discordar um pouco quando você diz que não dá para imaginar o PT, com a força que os movimentos feministas têm lá dentro, misógino. Eu consigo imaginar, você tem figuras no petismo, ele não é um dirigente petista, mas é uma influência de petista como o ator José de Abreu que usa sistematicamente ataques misógenos machistas e ataca mulheres, inclusive com cusparadas etc., Isso já desde lá de trás, e continua fazendo ainda hoje, num momento em que o PT está na oposição.

Pedro Dória (Meio): E não é censurado. [00:19:00]

Vera Magalhães: Exato. E nunca é censurado. Mesmo o Lula, ele fez ali naquelas gravações que vazaram depois, uma série de declarações que se tivesse na boca de um Bolsonaro seriam repudiados e não foram. “Quero ver se essa mulher tem grelo duro“, etc., falando de ministras do Supremo, e isso passou numa nice, “grelo duro” passou a ser até um adjetivo de empoderamento feminino porque as mulheres compraram essa narrativa. Mesmo em relação a jornalistas, já havia ataques a mulheres. Eu mesma sofri, em 2014 meu marido saiu da Revista Veja, na qual ele era editor executivo e foi ser o coordenador da campanha do Aécio Neves. Eu pedi um sabático na Folha, eu editava o Painel na época, porque entendi que era incompatível aquilo, e que eu não dava para editar a principal coluna de notas do jornal tendo o meu marido como assessor de um dos candidatos. Mas, apesar de eu ter tomado a iniciativa e o jornal inicialmente ter sido até contra, dizendo numa atitude bastante louvável do ponto de vista de como enxerga a igualdade de gêneros, que a minha carreira era uma carreira já consolidada e que independia tudo do meu marido, elas corriam em paralelo, uma não interferia na outra. Ainda assim eu entendi que precisava sair, eu tinha um direito a um sabático, pelas regras da Folha, que você acumula de acordo com os anos e fui estudar roteiros, saí da eleição, nem votei, nem fiquei no Brasil etc. Ainda assim, os sites petistas transfomaram aquilo numa coisa que eu estava sendo afastada do painel porque meu marido tinha ido para… então já houve uma distorção absurda na ocasião. Mas é isso que você falou, o grau de violência e de cafajestagem não era tão grande, talvez porque ainda não tivéssemos atingido o estado da arte de que tudo é possível nas redes sociais. Teve um outro episódio naquela ocasião com a jornalista Débora Bergamaschi. Ela divulgou a delação do Delcídio do Amaral na Revista Isto É e automaticamente os sites petistas passaram a dizer que aquilo era porque ela tinha um caso com o ministro José Eduardo Cardoso, uma narrativa que não parava nem de pé. Porque o ministro que tivesse um caso com uma jornalista não ia querer vazar algo contra o governo, mas a tentativa de estigmatizar uma jornalista era tamanha, que até essas coisas que não tem lógica foram usadas. Eu acho que agora tem autorizado pelo presidente e verbalizado pelo presidente muitas vezes em ocasiões oficiais, como ele chegou a me atacar em pronunciamentos dentro do Palácio do Planalto, a Patrícia Campos Mello na frente do Alvorada, autorizado pelos filhos, pelo entorno, pelos parlamentares. Então esse caráter institucional da cafajestagem é uma coisa exclusiva do selo bolsonarista. E de fato o absurdo do tipo de acusações, do tipo de ataques que é muito baixo. Mas eu acho que agora tem uma reação maior, que eu não sei se seria se o petismo fosse o governo, por exemplo, os sindicatos defenderiam as jornalistas com a mesma ênfase com que fazem hoje em dia quando os ataques partem do Bolsonaro. Naquela época calaram em relação a tudo isso. Então tem uma questão de pesos e medidas bem complexa aí.

Pedro Dória (Meio): Mas e como é que é? Isso dificulta de alguma forma o trabalho, Vera? [00:22:37]

Ataques pessoais nas redes sociais afetam jornalistas

Vera Magalhães: Dificulta, claro. A gente é (acha graça) demasiado humano (riso), acaba sendo afetado por essas coisas, é lógico. Teve um dia em que eu passei mal, você estava lá (acha graça). Você viu. Eu passei mal fisicamente, eu estava gravando um podcast quando começa a chegar no meu celular aviso de que o Bolsonaro estava me atacando numa live, me xingando, que não era da minha laia. O presidente da república aqui, a autoridade máxima do país e uma jornalista que ele veio deste lugar para cima de mim para me chamar para um debate porque eu tinha informado uma coisa que era correta. Então, nesses momentos não tem como você dizer que isso não te abala. (ver matéria referente ao ataque de Bolsonaro a Vera Magalhães) Eu acho que ninguém, pelo fato de eu ser mulher, qualquer um ficaria bastante abalado. O que eu procuro fazer? O que eu tenho feito mais agora nesses últimos tempos em que a coisa está mais exacerbada? Criar todos os filtros possíveis nas redes sociais, para que eu não tenha de ler aquilo, aquilo até pode estar lá o chorume, mas eu posso passar ao largo, e me assessorar de um acompanhamento jurídico efetivamente, alguns ataques que eu sofri nas redes expondo as escolas dos meus filhos ou outros em que eu fui parar em cartaz de manifestação de rua, portanto incitando uma violência que sai do virtual e pode extrapolar para o concreto, para o físico. Então, nesse caso eu estou acionando os responsáveis judicialmente. Eu sei que a Patrícia Campos Mello inclusive está movendo uma ação contra o presidente por ele ter feito parte disso. Meus advogados até questionaram essa possibilidade, mas eu acho que como eu sou uma colunista de política, cubro o governo, não vi muito sentido em acionar o presidente da república. Mas eu acho que este movimento também que os jornalistas reagem, os jornalistas passam a ter uma voz mais ativa, mais opinativa, você que está nessa coisa de acompanhar redes sociais há muito tempo, sabe. Antes as redações, você também já foi do aquário do Globo e participou dessas decisões, o nosso comportamento nas redes sociais era movido por um código muito restrito do que você podia postar, do quanto você podia opinar. Eu acho que quando o governo, ele amplia, o Bolsonaro e o bolsonarismo e o governo, eles esticam a corda da institucionalidade, também há do lado de cá, e esse também é um momento dos Estados Unidos, de os jornalistas passarem a ter uma voz mais opinativa nas redes: “Olha, isso tá errado; isso contradiz o que diz a Constituição; isso não é de um Estado democrático”. Então eu acho que a gente vive um outro tempo, não sei o que você acha em relação a isso.

Pedro Dória (Meio): Eu acho que é uma observação interessante que eu não tinha parado para pensar, mas você tem razão. De uma forma generalizada, existe uma voz mais ativa por parte de jornalistas, que eu não sei se eu chegaria ao ponto de dizer, algum sim, inclusive é o meu caso, a opinião. Mas em muitos casos é uma coisa que é um degrau anterior à opinião, que é a análise, que é simplesmente a constatação de fatos, dar um contexto de forma que fique claro por exemplo, que uma determinada ação é inconstitucional, trazer mais informação para esse debate e se posicionar mais, que é uma coisa que de fato talvez tenham sido empurrados a isso, porque existe a complicação de ter de lidar com o governo que está pressionando as instituições consistentemente, testando os limites da democracia de uma maneira que aí sim, é única na história recente do país. [00:26:47]

Os caminhos autoritários do nazifascismo

Vera Magalhães: Única. E você tem isso de integralismo, tenentismo e tudo mais, você já viu esses momentos em que foram dados esses caminhos autoritários.

Pedro Dória (Meio): Os anos 20 e os anos 30 foram isso. A diferença é que nos anos 20 e nos anos 30, o cenário mundial é um cenário de afastamento da liberal democracia. Você tinha tanto o Comunismo na União Soviética a partir da Revolução de 1917, como você tinha já a partir de 1922 a ascensão do Fascismo na Itália, depois em 1933 o Nazismo na Alemanha. Quer dizer, existia um ambiente internacional de defesa de sistemas ditatoriais e até mesmo totalitários. Nesse contexto, nós não estamos; embora exista uma crise da democracia no mundo, existe um ambiente ainda no qual você precisa falar. Mesmo o Bolsonaro pressionando os limites da democracia e vendo se consegue derrubar a democracia, no discurso ele jamais diz que ele não está sendo democrático, quem não está respeitando a Constituição é todo o resto! Mas não ele. [00:28:10]

A pandemia e seus efeitos sobre a Nova Direita

Vera Magalhães: (acha graça) Mas deixa eu te provocar. Se não tivesse havido a pandemia do coronavírus: agora nesse momento, e se ela não tivesse colocado ele em cheque, esse tipo de governo com propensão autoritária, tanto aqui como nos Estados Unidos a gente vê o Trump (Donald Trump) também pressionado por conta de uma coisa que é muito concreta, que é a pandemia, que é a morte das pessoas, não seria muito (ininteligível) {de dez} [00:28:35] uma releição do Trump, uma recuperação econômica do Brasil que também levaria a uma reeleição do Bolsonaro? E com ecos na Europa, a construção de um mundo mais autoritário em que essa nova Direita, essa {outright} [00:28:51] (sincero) fosse se espalhando?

Pedro Dória (Meio): Eu acho que reeleição do Trump seria um ponto chave para uma inflexão dessas sim, e aí um reforçamento daquilo que eles estão chamando de democracia iliberal…

Vera Magalhães: Sim.

Pedro Dória (Meio): …que é o regime húngaro, por exemplo, ou pelo menos era o regime húngaro até o Orban dar o golpe de Estado do coronavírus e assumir todo o poder. Aí já não é mais democracia liberal, aí já não é mais democracia.

Vera Magalhães: Exatamente.

Pedro Dória (Meio): Mas eu não tenho, eu não diria que a reeleição do Trump era {politidez} [00:29:24], eu acho que essa é uma eleição muito próxima e que dependeria o resultado de dois ou três Estados. [00:29:38]

Vera Magalhães: Mesmo a Economia voando como estava?

As eleições americanas de 2016 e 2020

Pedro Dória (Meio): Sim. O que todas as pesquisas, os analistas de Direita gostam de dizer é que a reeleição do Trump era segura e tudo mais. Mas o fato é o seguinte, estava tudo apontando para os Estados ali do cinturão da ferrugem, que deram, que sempre votaram no Partido Democrata, desde Roosevelt (Franklin Delano Roosevelt), com uma exceção que foi a reeleição do Reagan (Ronald Reagan, presidente pelo Partido Republicano – 1981-1988), e que votaram no Trump. E havia um debate ali se a questão ali era uma questão misógina, tipo não queriam votar numa mulher, ou se era uma questão mesmo do discurso populista do Trump ser popular entre sindicalistas que queriam reabrir fábricas e tudo mais. Agora, o Joe Biden (Joseph Robinette “Joe” Biden Jr, vice-presidente do Partido Democrata dos Estados Unidos entre 2009 e 2017) venceu em Michigan as primárias com uma folga tão grande e com uma presença de eleitores tão grande, que eu diria que eu não me surpreenderia se o Cinturão da Ferrugem fosse para o Biden. [00:30:40]

Vera Magalhães: Eu acho que aí tinha mais uma questão que era um contraponto desses eleitores democratas, desses Estados ao fato de que o outro candidato era o Bernie Sanders, ou será do (ininteligível) [00:30:54]?

Pedro Dória (Meio): é.

Vera Magalhães: Mas eu ainda vejo o cenário pré-pandemia como um cenário muito favorável ao Trump. Mesmo porque você está partindo do Biden agora, mas o Biden é uma realidade do pós- pandemia. A gente não sabe (ininteligível) o vencedor num cenário anterior a isso. Você acha?

Pedro Dória (Meio): Ele jtinha se consolidado ali na super terça-feira como um front (ininteligível), como o cara na frente. É claro que as chances do Sanders ainda existiam e desapareceram com a pandemia, porque tudo desmontou, a realização das primárias se tornou muito mais complicada. E o próprio Sanders chegou à conclusão de que não era mais de brigar, era o momento de cerrar fileiras, e a prioridade do Partido Democrata é vai ser Donald Trump. Mas olha, o que eu estou dizendo é apenas que eu via… [00:31:49]

Vera Magalhães: Desviei nosso assunto totalmente, né? Desculpa. (acha graça)

Pedro Dória (Meio): Tudo bem. (acha graça) É que eu via eleição americana como imprevisível, não como {purededez} [00:31:53] para o Trump. E assim, é uma coisa, o que é que vai acontecer no segundo semestre que poderia definir? E voltando para o Brasil (acha graça), uma das críticas que eu mais ouço a nós, da imprensa, eu acho que até nós concordamos a respeito. Mas uma das críticas que eu mais ouço é… [00:32:20]

A questão da ‘normalização de Bolsonaro’ pela imprensa e por parte da sociedade civil

Vera Magalhães: Normalizar o Bolsonaro. (acha graça)

Pedro Dória (Meio): Normalizar o Bolsonaro e em paralelo, mas que é a mesma coisa, a constante afirmação que não é tão constante assim, de que as instituições estão funcionando. Eu acho que as instituições estão razoavelmente funcionando, o que não quer dizer que estejam funcionando a pleno vapor, e eu acho que a gente não tenha normalizado o Bolsonaro. [00:32:50]

Vera Magalhães: De jeito nenhum. Eu não acho.

Pedro Dória (Meio): Mas, qual é a sua impressão? [00:32:53]

Vera Magalhães: (acha graça) Nossa! A minha impressão é que eu tenho ódio dessa expressão, calibrar, ela precisa ser banida rapidamente. A gente estava vivendo os anos do cancelamentos até o ano ser efetivamente cancelado pela pandemia, cancelem essa expressão, por favor, porque ela é cínica, ela é arrogante, ela traz tudo, aí sim, todos os erros que levaram a Esquerda a chegar ao lugar onde ela chegou. Porque a gente não normalizou o Bolsonaro, isso que eles chamam de normalizar o Bolsonaro, que é “Ah, vocês fecharam os olhos, que ele sempre foi isso que ele é” e não! A imprensa bateu nele justamente por isso, talvez sem perceber primeiro, que as pessoas estavam votando nele por isso e não apesar disso, muitas, muitas das pessoas. E que ele não escondeu nada, a gente não escondeu nada, e os momentos em que ele se saiu melhor ao longo da campanha foram os momentos em que a gente o questionou sobre esses bolsonarismos, pelo fato de ele ter defendido tortura, ditadura. Eu acho que é preciso um olhar mais profundo, que sociedade é essa em que a gente vive em que as pessoas, e não a imprensa, e nem só o candidato, normalizam esse tipo de coisa que ele defende? Porque isso não é uma parcela da sociedade, não é só o Bolsonaro. Ele foi eleito porque ao dizer isso, ele encontrou uma ressonância com um setor da sociedade que até então tinha vergonha de dizer o que pensava. Então eu não acho que a imprensa tenha feito isso, eu acho o contrário, ela ficou muito tempo nessa pauta sem olhar outras pautas muito… essas assim, que o Bolsonaro tentou esconder, e essas sim que poderiam ter evitado a sua eleição, a saber: a sua prática como um deputado petequeiro do baixo clero, que praticava rachadinha, que praticava, usava auxílio moradia para comer gente, que tinha funcionário fantasma vendendo açaí, eu acho que a Folha fez essa pauta, algum outro veículo fez essas pautas, mas elas ficaram meio diluídas aí. A gente não mapeou o nascimento dessa nova direita e a sua extensão nas redes sociais, muito consistente, a partir daquela dos memes do Bolsonaro zoeiro, Bolsonaro opressor, e etc. E o peso que isso teve em montar uma rede de desinformação e de construção dessa mitologia do Bolsonaro, nessas coisas eu acho que a imprensa falhou. Mas dizer que a gente normalizou o Bolsonaro, eu não acho que seja verdade. Eu acho que a gente, pelo contrario, ficou simplesmente pregando, chovendo no molhado de que Bolsonaro era Bolsonaro, sem pensar que a sociedade muitas vezes estava votando nele por conta daquilo. A segunda coisa que você fala, você falou da normalização do Bolsonaro e da força ou não das instituições. Eu acho que sim, elas estão funcionando, essa crispação institucional, ela nunca tem uma resposta linear, o mecanismo de freios e contrapesos da Constituição, eu acho que está funcionando como nunca funcionou, a gente nunca viu o Supremo Tribunal Federal, a despeito de uma certa leniência nas falas institucionais do seu presidente Dias Toffoli inclusive no Roda Viva, a gente nunca viu o Supremo derrubando em série decisões do Executivo como a gente está vendo agora e por diferentes ministros de diferentes grupos lá dentro. Então, você tem uma… eu não sei em que grau isso é orquestrado, em que grau eles conversam antes sobre isso. Mas você tem o Supremo como um conjunto dizendo: “Opa! A partir daqui você não pode ir”. Isso é uma reação institucional, é todo mundo: “Ah, não aguento mais notinha de repúdio”. Tudo bem, mas o processo de impeachment, ele precisa nascer de algum fato concreto, um crime de responsabilidade, e ele precisa ter outros elementos que o legitimem: apoio popular, apoio parlamentar e precisa o setor da Economia entender que aquele presidente já não se sustenta mais. O da Dilma (impeachment de Dilma Rousseff) só se tornou possível quando houve o alinhamento de todos esses astros, a gente não tem esse problema. Isso não é uma omissão das instituições, o Rodrigo Maia não vai dar a cara a tapa e ser derrotado num processo de impeachment, porque a carreira política dele acaba por ali. Ele só vai abrir o processo de impeachment quando ele olhar para a casa dele, entender que lá existe um número de votos para isso, olhar para fora da casa dele pelas pesquisas ou pelos panelaços ou pelos movimentos de rua e entender que o Bolsonaro já não tem um terço da população, porque com um terço da população ninguém sofre impeachment. Então eu acho que é um erro creditar tudo na conta das instituições, tem um conjunto aí de fatores que levam a que a reação não seja aquela que talvez deveria ser, às exorbitâncias do Bolsonaro.

Pedro Dória (Meio): Isto posto, que segurança você tem na democracia brasileira? [00:38:13]

Democracia brasileira ameaçada pelo projeto aventureiro de poder de Bolsonaro?

Vera Magalhães: É uma boa pergunta, Pedro. A gente perguntou isso para o Toffoli, ele foi lá em {Levi Strauss} [00:38:14] falou de uberização da democracia deu uma volta (acha graça) e não respondeu. Eu não sei…

Pedro Dória (Meio): Na verdade eu acho que ele respondeu sim, porque quando ele diz: “Não, o que está ameaçado é a democracia representativa”, o que ele está dizendo é “a democracia está ameaçada!”. (acha graça)

Vera Magalhães: Exato. Também acho.

Pedro Dória (Meio): Ele está fingindo que ele não está dizendo isso, mas é isso que ele está falando. [00:38:36]

Vera Magalhães: É isso. E depois eu cobrei sobre isso, eu falei: “Ministro, o nosso sistema previsto na Constituição é democracia representativa. Para que a gente passe para uma outra, precisa de uma reforma constitucional, ou então, é golpe, não tem outra forma. Você muda um sistema por uma reforma constitucional ou você faz uma revolução por um golpe, etc.”. Mas ele não quis avançar a partir daí. Eu acho que tem o desejo e tem o que você consegue fazer. Não tenho dúvida mais, cheguei a ter por alguns momentos, se a gente podia estar de implicância com o Bolsonaro, mas não, não tenho mais dúvida que o projeto dele é um projeto autoritário de usurpação da democracia. Antes era aos poucos e agora, se ele pudesse, seria numa lógica chavista (Hugo Chávez, tomada de poder na Venezuela) mesmo, de tomar de assalto. Mas eu acho que ele não tem os meios, eu acho que a nossa sociedade é mais plural que a da Venezuela. Eu acho que as nossas instituições, como acabei de falar, elas são mais resilientes. E eu acho que a pandemia veio para, de alguma forma, fazer com que os fatos prevaleçam sobre a narrativa, a ciência prevaleça sobre o obscurantismo, e o jornalismo, voltando à nossa conversa inicial, prevaleça sobre as fake news. Eu acho que se tem alguma coisa, algum efeito positivo disso que a gente está vivendo, essa coisa distópica que a gente está vivendo, vai ser de deixar muito claro o contraponto entre essas categorias. Então eu acho que nisso, o Bolsonaro perde muito, um chefe de Estado que se comporta de maneira irresponsável, vil, nada empática com traços até de sociopatia diante de uma crise que está vitimando as pessoas porque elas perdem entes queridos, porque elas perdem o emprego, porque elas estão assustadas, porque não é uma coisa só do Brasil, elas já viram acontecer no mundo. Então, isso também impede que seja tudo resolvido na base da narrativa. Eu acho que isso vai ferir de morte o Bolsonaro, vai fazer com que ele se isole ainda mais, perca ainda mais vitamina na sua aprovação popular, e vai torná-lo mais fraco do que ele já é para tentar um golpe. Acho que os militares estão sendo muito condescendentes com ele, escrevi na minha coluna no domingo que eles estão agindo como babás fardadas, e eu acho mesmo. E, a depender do que a gente vier a ouvir dessa reunião ministerial de 22 de abril (de 2020), o grau de atrocidade dita para o silêncio de alguns personagens, essa conivência vai chegar às raias da cumplicidade. Mas eu não acho que eles, apesar desse comportamento que eu acho que é muito, muito, muito leviano, eu não acho que eles apoiariam no limite um golpe de Estado e que as Forças Armadas viriam para uma aventura dessas. Então, eu acho que o desejo sim, totalmente antidemocrático. Eu acho que a nossa democracia, ela já está em risco por isso. Porque quando você fica testando os limites, é como um programa de computador que está com vírus. Ele está rodando ali más ele está rodando mal. A nossa democracia está rodando mal, e a gente está fazendo isso num momento em que as pessoas estão morrendo. Mas eu não acho que ele vá conseguir o seu intento, não sei se você concorda comigo.

A questão da divisão entre militares sobre o bolsonarismo

Pedro Dória (Meio): Eu acho que não vai conseguir, não. Mas tem algumas coisas que eu acho que não entendo. Eu tinha uma determinada impressão, por exemplo, a respeito dos militares, que eu já não tenho mais. Eu percebo os militares a distância, nós não somos uma geração de jornalistas que acompanhou a política dentro das Forças Armadas como a geração anterior à nossa. Então, eu acho que nós conhecemos pouco a maneira como pensam as Forças Armadas. É claro que isso se ampliou muito desde então, mas nós conhecemos pouco. E me parece que há militares claramente legalistas, é o caso do comandante do Exérctp, do General Pujol (Edson Leal Pujol), que diferentemente até do General Villas Bôas (Eduardo Villas Bôas), que é o antecessor dele, sempre que se manifesta, é para falar muito claramente a respeito da pandemia, dos riscos que a pandemia oferece, e em prol da democracia. Agora, num outro extremo temos figuras como o General Augusto Heleno, por exemplo, que está na reserva, mas tem um cargo de enorme importância dentro do Palácio do Planalto, e ontem estava tuitando que era antipatriótico você divulgar o vídeo porque haveria segredos de Estado sendo discutidos, quando tudo que nossas fontes têm dito, eu só conversei com uma das pessoas que assistiu o vídeo, você deve ter conversado com mais. Mas eu perguntei isso especificamente: “Há algum segredo de Estado?”, “Isso, há constrangimentos de Estado, segredo de Estado não está ali”. Quer dizer, eu percebo uma divisão do alto comando do Exército muito maior do que me deixa confortável. [00:44:17]

Vera Magalhães: Confortável.

Pedro Dória (Meio): E o próprio artigo do General Mourão (Hamilton Mourão) hoje no Estadão, ele é o vice-presidente da república e está fazendo um artigo de franca defesa do Bolsonaro. [00:44:31]

Vera Magalhães: Eu tenho uma certa divergência, quase uma nuance.

Pedro Dória (Meio): Você acha que tem uma ambiguidade? [00:44:37]

Vera Magalhães: (acha graça) Em relação às duas coisas

Pedro Dória (Meio): Diga.

Os militares e a questão do combate à corrupção e à pandemia

Vera Magalhães: É, eu acho que existe essa heterogeneidade nas Forças Armadas, mas eu acho que ela está muito clara entre os que têm cargos no governo, cargos políticos, cargos de livre provimento, dentro do governo, e quem está na ativa. Quem está na ativa não coaduna com esse estado de coisas e acha que os seus representantes nos cargos de livre provimento estão sendo sim, complacentes e coniventes. Isso desde dos altos comandos, como você citou mesmo o General Pujol que até por isso está na linha de mira, na alça de mira do bolsonarismo, mas também para baixo. A gente perdeu, eu acho que, uma das falhas da imprensa, quando eu listo as várias falhas que nos trouxeram até o bolsonarismo, uma delas sim, um acompanhamento do que acontecia nas Forças Armadas. E a gente teve muitas pistas, o próprio surgimento do Mourão lá atrás, como alguém que passou a vocalizar umas pautas mais radicais. Aquelas falas do General Villas Bôas que é até de certa forma um moderado, mas que na época do julgamento do Lula foi ali ao Twitter para dizer que qualquer… não dizer com essas palavras, mas dá a entender que qualquer decisão que não fosse a manutenção da prisão dele poderia resultar em conturbações institucionais, sociais e etc. e tal, já mostrava que as Forças Armadas, depois de um período longo, desde a redemocratização, de um certo comportamento low profile, muito restrito, muito escrito e muito dentro daquilo que pressupõe a Constituição, estavam incomodadas politicamente, incomodadas com a corrupção associada ao PT. E quando você conversa com essas fontes, você sente muito isso, eles passam pano para tudo que o Bolsonaro faz, na base daquele “E o PT? E o Lula?”, o General Heleno é alguém que tem a mente turvada por esse fantasma, porque ele não era um radical até há pouco tempo atrás. Ele foi se radicalizando, comprou o bolsonarismo no pacote completo full, {há o inn} [00:46:58] do bolsonarismo e acho que a explicação mental que ele dá para ele mesmo, para isso que ele se tornou é, “se não fosse isso era o PT e era o Lula”. Outros não foram por aí. O próprio Santos Cruz (Carlos Alberto dos Santos Cruz), que era alguém que no começo era muito crítico a essa coisa da corrupção, eu lembro que ele me falava. Eu ia lá e ele falava: “Ó, já economizamos tanto só com a roubalheira”, em nenhum momento ele viu o gérmen do autoritarismo sendo gestado ali dentro. E saiu e se opôs e rompeu. Então, eu acho que é heterogêneo, mas não acho que eles vão no limite, nem esses mais radicais vão para o golpe. E o artigo do Mourão, acho que ele tem essas ambiguidades todas, porque a pretexto de defender o Bolsonaro, e como o bolsonarismo faz uma leitura bem rasa das coisas, ele vai ler: “Ô, pô! O Mourão tá com a gente”, quando ele se coloca para o debate no jornal que obteve a vitória na justiça para que o Bolsonaro mostrasse seus exames para a covid-19, no dia seguinte dessa revelação, ele vai para esse jornal e escreve um artigo que embora critique atores que estão em oposição ao Bolsonaro – imprensa, governadores, o judiciário e a oposição – ele propõe um diálogo com essas forças. E ele diz que entre todos os países do mundo, o que foi pelo pior caminho foi o Brasil no combate à pandemia. Isso não tem como dizer que ele está poupando o Bolsonaro. Ele a seguir distribui culpas pelos outros, mas a primeira coisa que ele escreve é que o Brasil é o que pior está conduzindo tudo isso. Então ao meu ver, de uma forma muito inteligente e muito sutil, e talvez não seja percebida pela gritaria bolsonarista nas redes, ele mostra um contraponto de que ele, embora fosse manter ali os valores, os princípios, até o alinhamentos ideológico com Bolsonaro, e ele precisa fazer isso porque em caso de ele vir a suceder o Bolsonaro, ele vai precisar ter respaldo da Direita brasileira, ele mostra que ele faria isso de uma maneira menos celerada que o titular. Ao meu ver fica muito claro esse substrato do artigo dele.

Pedro Dória (Meio): E contradizendo o que eu falei inicialmente, ele começa já dizendo: “O grande problema é a pandemia”.

Vera Magalhães: É.

Pedro Dória (Meio): E a pandemia tem repercussões x, y…

Vera Magalhães: Sociais e econômicas?

Pedro Dória (Meio): …e econômicas, é políticas, sociais e econômicas. Quer dizer, ele sequer bota a economia como a maior repercussão, mas como uma das três porque é isso, é uma das três repercussões de igual gravidade.

Vera Magalhães: É.

Pedro Dória (Meio): Junto com a repercussão política e junto com a repercussão do impacto social que esse número enorme de mortes que ainda vão acontecer, certamente terá. Então, você está essencialmente dizendo que o General Mourão é um político? [00:49:53]

General Mourão é um político

Vera Magalhães: Ah, super! Eu acho que desde o início ele tem deixado isso muito claro. Quando você acompanha as reuniões, e vai ser interessante ver essa reunião do 22 de abril (de 2020) como ele se encontrou…

Pedro Dória (Meio): Você acha que ela vai ser liberada? [00:50:07]

A liberação reunião ministerial de 22 de abril (de 2020), Augusto Aras e Sérgio Moro

leia a reunião do dia 22 na íntegra

Vera Magalhães: Eu acho que sim. Eu acho que por tudo que Celso de Mello tem feito nesse inquérito e tudo o que ele tem opinado em retrospecto em relação a esses arreganhos autoritários do Bolsonaro, e pelo fato essencial daquilo que você falou antes, de que não há um segredo de Estado, e que o documento não foi classificado como um documento sigiloso, ele não tem porque manter o sigilo. Ele está esperando as manifestações, e aí vai ser interessante, a gente ver a manifestação do Augusto Aras (Augusto Aras), porque esse é um personagem que está num momento limite da vida dele, que ou ele salva a biografia, ou ele vai mostrar que ele está agindo única e exclusivamente esperando ser indicado para o Supremo Tribunal Federal. Mas ele vai, eu acho que ele vai liberar. Eu acho que nas próximas 24 horas, a gente vai conhecer essa fita. E aí eu acho que a gente tem duas opções, ou vai ser uma gravação avassaladora, como foi a do Aécio Neves, que aí se viu um político totalmente diferente da imagem pública que ele tinha, ou vai ser como a do Temer e com o Joesley que ainda permite você…

Pedro Dória (Meio): Ambiguidade. [00:51:18]

Vera Magalhães: …é, você captar uma coisa aqui e/ou outra ali. Eu tendo a achar que essa é uma gravação que só fica no primeiro grupo, por que? Porque sim, todo mundo sabe que o Bolsonaro fala palavrão, que ele é esporrento. Mas isso transposto para uma reunião de trabalho com todo o ministério durante uma pandemia que você acabou de demitir o ministro da Saúde no meio da pandemia e você ameaçar demitir o ministro da Justiça por questões pessoais, eu acho que aí se vai ver que o que havia ali não era uma reunião ministerial, mas uma conspiração de ideólogos e de radicais ideológicos pela fala que se diz que existe do ministro da Educação (Abraham Weintraub), da ministra Damaris (Damaris Regina Alves). Então, eu acho que a lógica mais comezinha mostra o que… quem tem mais segurança na versão que contou, porque a versão do Moro é uma desde lá de trás, e ele está dizendo: “Libera, libera a íntegra; libera a íntegra”. O Bolsonaro tentou de todas as maneiras evitar que a gravação não fosse enviada para o Supremo, chegou a dizer que poderia ter destruído, o que é uma maluquice, porque a partir do momento que você tem um documento oficial e que ele já foi citado num depoimento judicial como prova, se você destrói você está cometendo um crime! Simples assim. Não é nenhuma liberalidade do Bolsonaro ter entregue a íntegra da reunião, ele não tinha outro jeito. Até isso a narrativa tenta distorcer. E se fosse assim tão tranquila, a versão que ele deu. E veja, ele sempre vive muito perigosamente. Ele deu uma versão aboletado na rampa do Alvorada que pode ser facilmente desmentida por uma simples audição de uma íntegra. Então, o presidente, ele insiste em viver no limite, ali no fio da navalha, e a gente vai ver. Eu acho que é um fator muito importante a liberação dessa fita.

Pedro Dória (Meio): Você citou uma questão relativa ao Aras, que eu acho que é uma das coisas mais fascinantes de observar no momento político atual. Muita gente, dentro e fora do governo, está ali jogando com a própria biografia. No caso do Aras, se ele for esperto, ele vai olhar para ver as promessas que foram feitas ao Moro, e qual foi o resultado disso, ele vai entender que Jair Bolsonaro não cumpre suas promessas. [00:53:57]

Vera Magalhães: E não se joga xadrez com o povo. (acha graça)

Pedro Dória (Meio): Que não se joga com um povo, para usar uma metáfora de Vera Magalhães.

(gargalhada) [00:54:05]

A preservação de biografias de Augusto Aras, Paulo Guedes em perigo

Vera Magalhães: Que joga xadrez com o povo. Se alguém tiver isso em mente, já me livra de ter a biografia solapada pelo bolsonarismo, o Nelson Teich era um que tinha que ter pensado nisso. O Augusto Aras é um que tem de pensar nisso, e o Paulo Guedes tem que pensar nisso, ô Pedro. Porque você veja, o que nós assistimos na semana passada naquela marcha bizarra do Bolsonaro e sua trupe indo até o Supremo Tribunal Federal. Na saída, ele ao vivo, do lado do Paulo Guedes, o que ele prometeu? “Eu vou vetar, na Economia quem manda o Paulo Guedes”. Cadê esse veto? Se passou uma semana e a gente não tem ainda o veto do Bolsonaro a aquele dispositivo que proíbe, que permite no caso, reajuste para os funcionários públicos. O que acabou de acontecer? Reajuste para PM do Distrito Federal. Uma desmoralização para o ministro da Economia, num momento em que o dólar está quase a 6 (reais), que a gente está mostrando que vai ter… ontem a gente fez uma expectativa aí de queda de 3,7 que ainda é otimista, do PIB. Então o Paulo Guedes é outro que está com a biografia preme. Se essa reunião vir à tona e você ouvir um monte de descalabros com o silêncio complacente dessa gente, já também acabaram de dar ali mais um golpe nas próprias biografias. Eu acho que eu concordo muito com isso que você está falando. Estava falando com um integrante da Economia, da equipe econômica sobre isso, falei: “Olha, o Moro saiu, está tentando recompor a imagem dele. Mandetta (Luiz Henrique Mandetta) foi saído, está tentando recompor a imagem. Bebiano (Gustavo Bebiano) morreu desgostoso, porque acreditou numa coisa e ele saiu de lá sem nunca conseguir esconder a sua frustração. E aí? Como é que vai fazer?”. Eu acho que tem algumas pessoas ali que não tinham uma biografia antes de Bolsonaro, só viraram alguém por conta do Bolsonaro, vão voltar a ser ninguém depois de Bolsonaro. Então esses vão no tudo ou nada com ele e eu entendo que o faça. São do grupo dos ressentidos, porque esse ressentimento é uma matéria vital do bolsonarismo de um jeito que a psiquiatria ainda vai precisar explicar. Então Ernesto Araújo, vai entrar a Damaris, esse pessoal que só existe, só pode existir num ambiente como o bolsonarismo, temo que vá para o tudo ou nada com ele. Mas Regina Duarte, olha o que ela era e olha quem ela é, de uma maneira que não vai ser revertido. Ela pode sair amanhã do governo, sair humilhada, como pode ser que aconteça, mas a biografia dela não vai voltar mais. O prestígio dela no meio em que ela… do qual ela saiu, que é o meio artístico, ela não recupera mais. A troco de que ela foi fazer isso com ela mesma? Muito complicado.

Pedro Dória (Meio): Esse é um dos grandes mistérios do momento, é pessoas evidentemente pessoas muito inteligentes, que você estava citando Paulo Guedes, a gente teve o que? Um ano e 3 meses de governo normal, antes da pandemia? [00:57:12]

Vera Magalhães: Menos. Janeiro já estava tudo despirocado. Janeiro já tinha o Bolsonaro ameaçando demitir o Moro, já tinha ele falando que a eleição foi fraudada em fevereiro, antes da pandemia. 2020 já está despirocado, 1 ano, vai.

Paulo Guedes e o estatismo de Bolsonaro

Pedro Dória (Meio): O que eu quero dizer com o governo normal é: antes da pandemia havia um governo. Esse governo jamais foi liberal na economia, não iniciou um processo de privatização, não tocou nenhuma reforma além da reforma que já estava lá e que o Congresso que fez que é a Reforma da Previdência. Para mim é um mistério profundo como pessoas evidentemente muito inteligentes, esse certamente é o caso do Paulo Guedes. A gente pode discutir se ele é um bom economista, se ele adota uma versão ultrapassada de política econômica liberal, tem várias discussões para serem feitas. Mas inteligente. [00:58:07]

Vera Magalhães: Tem muito.

Pedro Dória (Meio): Questiona. Me parece inacreditável como… alguém fez esse comentário comigo, outro dia, que eu achei muito interessante. O Steve Jobs, diziam que ele tinha um campo de distorção da realidade ao redor dele. Porque ele era um cara extremamente criativo e no entanto extremamente agressivo com todo mundo ao redor dele. Era um chefe terrível. E todo mundo falava dele com certo encantamento. Eu sei que ninguém fala do Bolsonaro (riso) com encantamento. Mas como que as pessoas não percebem que daqui a cinco anos, Vera, há colegas jornalistas nossos que embarcaram nisso.

Vera Magalhães: Opa!

Pedro Dória (Meio): Pessoas que eu sei que são profundamente inteligentes, inclusive um ou outro amigo pessoal. [00:58:55]

Qual a filosofia política de Paulo Guedes: cavalos de Troia

Vera Magalhães: Então, mas aí tem uma característica que tende… que atenceder à inteligência. São todos inteligentes, mas eu te faço uma pergunta. Você acha que alguém como o Paulo Guedes tem na democracia um valor absoluto? Ou não necessariamente dadas outras circunstâncias? Ele defende até hoje o Chile de Pinochet, ele acha que aquele é um modelo que deu certo. E ele simplesmente exclui o fator democrático dessa análise que ele faz. Quando ele se junta ao Bolsonaro, tem aí um fator pessoal também, e que a gente tem que conhecer a história do Paulo Guedes para entender, que é o fato de ele sempre ter sido alguém com uma carreira muito bem sucedida no mercado, ter tido uma formação brilhante, do ponto de vista da formação econômica, mas nunca ter sido aceito no clube dos formuladores de políticas econômicas, políticas públicas macroeconômicas do Brasil, a saber o pessoal da PUC do Rio, os pais do Real e depois os formuladores do petismo. Então ele sempre ficou excluído desses clubes. Ele até foi chamado em alguns momentos para conversar, mas por incompatibilidades pessoais ou filosóficas, ele não fez parte desses grandes momentos e sempre foi muito crítico tanto aos sociais democratas do PSDB, quanto principalmente ao PT. Ele vê no Bolsonaro uma espécie de um cavalo de troia para ele ter finalmente a chance de mostrar ao Brasil inteiro, e aí não só ao mercado, o economista brilhante que ele era. Ele achou que ele iria efetivamente fazer a tal aliança que ele diz da ordem com o progresso e implantar o liberalismo no Brasil usando o Bolsonaro para isso. Só que ele não percebeu que o Bolsonaro estava usando ele como um cavalo de troia, Bolsonaro, um eterno estatizante, corporativista, tudo que a gente sabe no baixo clero. Viu no Paulo Guedes um cavalo de troia para ganhar o mercado e ganhar a aceitação do empresariado etc., que ele nunca teria sendo o Bolsonaro da roupagem antiga, e agora no poder, até deu ali corda para ele no começo, mas agora, diante de uma economia pós-pandemia totalmente em frangalhos, será que ele vai voltar para aquela agenda que, como você mesmo disse, já não era liberal stricto sensu? Já era uma coisa improvisada? Não vai. Ele deu uma ajuda emergencial de 600 reais, que é muito mais que o bolsa-família, e que ue atinge muito mais gente. Ele tem chance de trocar de base social, de fazer o que Lula fez na gênese do bolsa família. Você acha que ele ameaçado de impeachment, ameaçado de não ser reeleito por definhar junto ao seu eleitorado lá de trás, ele vai perder a chance de partir para um populismo econômico também? Além do político? E essa ideia de Brasil grande, grandes obras e impulsionar isso e manter esse auxílio emergencial como uma muleta até lá em 2022? Eu não tenho a menor dúvida que ele vai para isso. Esse episódio do veto é um dos episódios, mas o Paulo Guedes ainda não percebeu isso, porque ainda está apegado à possibilidade de ser o cara que vai redimir os liberais no Brasil, acho que isso já passou.

Pedro Dória (Meio): É, eu acho que é isso mesmo. O DNA do Geisel está ali, o DNA do Médici está ali, a política econômica militar, aquela política de grandes obras, muita corrupção. (acha graça) Esse é o resultado das grandes obras, não estou dizendo que sejam corruptos agora. Mas se você começa a fazer obras gigantescas, começa a dinheiro ser distribuído. Eu só argumentaria que o Lula estava numa bonança econômica que o Bolsonaro não tem.

Vera Magalhães: isso.

Pedro Dória (Meio): inclusive internacional. Então talvez seja mais difícil para o Bolsonaro fazer essa virada, porque talvez ele não consiga, a não ser que ele decida fazer com que o Banco Central comece a produzir, inventar dinheiro loucamente, ele provavelmente não consegue fazer essa sustentação. Mas que é tentador, certamente é.

(riso) [01:03:29]

Vera Magalhães: Certamente é.

Pedro Dória (Meio): Vera, deixa eu te fazer uma pergunta dupla, que é a nossa pergunta de encerramento para a gente terminar a conversa. A pergunta dupla é o que é: o que você acha que acontece para ter, embora algumas pesquisas já estejam apontando uma queda de popularidade do Bolsonaro ali para os 26-27% de ótimo/bom da avaliação pessoal do presidente da república, a maioria das pesquisas ainda está acima dos 30%. O que é que você acha que explica essa resiliência? A impressão que eu tenho é a seguinte, no momento que a validade pessoal do Bolsonaro cair abaixo de 15%, isso dispara um processo de impeachment. É essa a impressão que eu tenho, eu não sei se você concorda com a premissa. [01:04:29]

Vera Magalhães: Concordo.

Pedro Dória (Meio): Mas mesmo 2 meses passados da pandemia, mesmo com a pandemia ganhando escala, a popularidade dele tem uma resiliência que é incrível. A que é que você atribui isso? E quais são as chances que você vê disso cair e a gente chegar a um impeachment? [01:04:51]

A resiliência da popularidade de Bolsonaro, a pandemia e a questão internacional do Brasil pária atinge Bolsonaro

Vera Magalhães: Eu acho, Pedro, que a gente tem, de fato, em vários setores da sociedade, o inconformismo com as regras de distanciamento social, as pessoas, de fato, estão desesperadas, porque muitas perderam o emprego, muitas perderam negócios, a gente tem esses relatos todos os dias. Então, esse discurso irresponsável, por parte do presidente da república, ecoa no natural desespero que as pessoas sentem vivendo essa situação. Mas vai ficar evidente, eu acho que já está ficando evidente, pela escalada de números que a gente tem tido desde a semana passada, que essa política de isolamento meia boca, que a gente tem feito, feita por espasmos, em que os governadores tentam impor medidas de isolamento mas as pessoas não cumprem, mas o presidente sabota, etc., isso vai nos levar para um lugar muito ruim. Já está nos levando para a possibilidade de ser o novo epicentro da pandemia, e vai começar a criar situações de constrangimento para o Brasil internacionais que já estão dadas aí. Cancelamento de voos para o Brasil de outros lugares do mundo, proibição da entrada de brasileiros em outros lugares do mundo. Essa discussão que tem, que é sobretudo humilhante para o Brasil de voltar a Libertadores sem os times do Brasil porque a coisa está descontrolada. Então essa coisa de Brasil pária diante do mundo é algo que fica dramático num momento em que você vai precisar do mundo para se recuperar, quando for começar a recuperação mesmo. E o fato de que o presidente contribui sobremaneira para isso, está dado, desde publicações científicas como a Lancet até editoriais diárias do New York Times, da The Economist, do The Washington Post. Então eu acho que essa deterioração do Brasil e essa consolidação do Brasil como pária do mundo no combate a uma pandemia, isso é fatal. E aí atinge o Bolsonaro nesse público que até então está meio parceiro dele, na ideia de “Ah, é. Talvez seja mesmo uma gripezinha“, a realidade vai bater. Essas pessoas, já tem pessoas que comandaram manifestações contra o isolamento que morreram de covid. Então, é muito crua, a realidade versus a narrativa. Eu acho que isso pode levar um tempo para consolidar mas as pessoas vão ver da pior maneira, infelizmente da pior maneira, perdendo parentes, perdendo pessoas que fizeram discurso contra o isolamento social e que vão padecer de covid, como alguns líderes desses movimentos. E eu acho que aí a popularidade dele vai sentir. Ele está para demitir o segundo ministro da saúde em um mês porque não concorda com os absurdos que ele diz. Então, acho que tem um limite o pessoal tolerância com o absurdo e com a falta de bom senso. A gente já está bem (acha graça) próximo desse limite. Eu já sinto, eu acho que ele mantém uma popularidade, mas a gente não sabe se ele trocou de apoio. Se ele perdeu mais do que 30% do que ele tinha e ganhou nessas pessoas que receberam os caraminguás dos 600 reais. Então portanto eu acho que até o Datafolha mostra um pouco dessa migração, mas nas redes sociais por exemplo, já não sinto aquela ferocidade que eu senti em relação a mim, eu vejo muita gente dizendo: “Não, até aqui eu fui com Bolsonaro, a partir daqui não dá”, a gente vai ter que ver como é que isso vai espelhar no público tradicional dele e nesse novo público. Porque as pessoas, mesmo essas que estão sendo aquinhoadas com os 600 reais, elas vão sofrer por uma série de outros fatores. Pela falta de emprego, você mesmo disse, não é um momento de bonança econômica. Então eu acho que a gente vai ter de observar, mas eu acho que o cenário de agosto não vai ser o mesmo de agora em termos de popularidade para o presidente.

Pedro Dória (Meio): Você tinha citado a questão dos anos 20 e 30, essa é uma diferença fundamental que nós temos para os anos 20 e 30, talvez para a nossa sorte em meio à tragédia, que é os movimentos radicais de Direita, a ascensão apesar de Mussolini ter vindo antes, o grosso da ascensão dos movimentos radicais de Direita é após a crise econômica. A gente teve essa ascensão anterior à crise econômica, quer dizer, estoura na mão deles e não de democracias liberais fracas, como a República de Weimar. [01:09:39]

Vera Magalhães: Exato.

Pedro Dória (Meio): E isso talvez opere para a nossa sorte, para o bem da democracia. [01:09:46]

Vera Magalhães: Bem da democracia, mas vai ser mais uma draga econômica, depois da Dilma, que foi aquele desastre, pobre Brasil. Para ter sorte, precisa ter tanto azar. (riso)

Pedro Dória (Meio): E acompanhado de uma tragédia, que a gente vai passar de 100 mil mortes. [01:10:04]

A tragédia do Brasil: 300 mil mortos por covid?

Vera Magalhães: É isso, tragédia. Também acho. Não, acho que a gente vai passar de 300. Eu acho que de 100 mil a gente passa em julho, infelizmente. Acho que a gente vai para uma casa de 300 mil, que era o cenário intermediário do Imperial College, caso a gente fizesse uma quarentena meia boca, que é o que a gente está fazendo.

Pedro Dória (Meio): Que horror.

Vera Magalhães: Dureza.

Pedro Dória (Meio): Vera, muito obrigado pela conversa.

Vera Magalhães: Passamos de uma hora hein? Tivemos chorinho.

Pedro Dória (Meio): (riso) Muito obrigado pela conversa. Foi ótimo.

Vera Magalhães: Obrigada você, muito bom. Vamos repetir. Eu vou te chamar para falar lá no meu canal também para a gente continuar a partir daqui.

Pedro Dória (Meio): Será um prazer.

Vera Magalhães: Então, tá bom. Beijão. (…) Beijo para os assinantes do Meio.

Pedro Dória (Meio): Tchau.

(fim da transcrição) [01:10:56]


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