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Sérgio Abranches entrevistado por Pedro Dória Transcrição

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Transcrição: Sérgio Abranches entrevistado por Pedro Dória

Sérgio Abranches desenhou o modelo de presidencialismo de coalizão em um paper que surgiu enquanto a Constituição de 1988 estava em construção. Entre outras características, presidencialismo de coalizão requer que o Executivo precisa se relacionar bem com o Congresso Nacional necessariamente. Foi esse modelo estrutural que Bolsonaro não entendeu, em um primeiro momento, levando-o a um presidencialismo de colisão com o Congresso Nacional.

Os impeachments de Collor e Dilma ocorreram no momento em que os dois perderam a sintonia com o Legislativo e a população.

Aqui Pedro Dória disseca a situação atual de Bolsonaro auscultando e extraindo do entrevistado ricas informações. O ponto alto, acredito, está na sugestão de implantação do mecanismo de recall, que é uma confirmação da população para que um presidente, um governador ou um prefeito eleito continue no cargo, um mecanismo existente nos Estados Unidos. O recall ocorreria uma única vez no meio do mandato do governante, o que diminui o estelionato eleitoral.

É uma entrevista que vale a pena ser lida, ou assistida. Mas a leitura vai economizar tempo, você vai poder apreciar o material em cerca de 30 a 40 minutos. Veja as estatísticas abaixo.

Estatísticas de transcrição

Duração: 81 minutos

Conteúdo: 10641 palavras (40 páginas A5 ou 20 páginas A4)

Média: 131 palavras por minuto

Tempo de leitura: 30-40 minutos

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Transcrição de áudio [207208] Conversas com o Meio Sérgio Abranches_eRHqAqGS_fo (81,4 min)

(início da transcrição) [00:00:00]

Pedro Dória (Meio): Olá. Meu convidado hoje no Conversas com o Meio é o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches. Sérgio é o pai do modelo que nos faz compreender a política brasileira, isso não é pouca coisa. A Constituição de 1988 ainda estava sendo redigida, quando ele publicou um paper em que ele desenhou esse modelo que a gente chama de Presidencialismo de Coalizão. Você não entende Brasil se você não entende presidencialismo de coalizão, e não é tão complicado assim para entender, não. Em essência funciona da seguinte forma: a gente tem um número fragmentado de partidos políticos, são muitos partidos. Isso faz com que não importa quem seja o presidente da república, um presidente nunca é eleito com maioria no Congresso Nacional. Por outro lado, nós temos um problema, porque do jeito que a Constituição foi escrita, você precisa do Congresso Nacional para governar. Para você executar as políticas públicas com as quais você se comprometeu, projetos de lei precisam ser aprovados. Aliás, como há muitas políticas públicas escritas na Constituição Federal, às vezes não basta você ter um projeto de lei, você precisa fazer reformas da Constituição. Ou seja, um presidente precisa ter uma maioria no Congresso que seja suficiente para reformar a Constituição, senão ele terá enormes problemas para governar. Piora, tá? A crise que levou ao impeachment do Presidente Fernando Collor é uma crise que começa, que tem na raiz o fato de que ele não tinha base no Congresso Nacional. A crise que levou ao impeachment da Presidente Dilma Rousseff começa pelo fato de que ela não tinha base no Congresso Nacional. E, evidentemente, a crise que nós estamos vivendo hoje, está diretamente relacionada ao fato de que o Presidente Jair Bolsonaro abriu mão desde o início de ter base, de formar base no Congresso Nacional. É claro que é agravada por ímpetos autoritários, é claro que no universo da pandemia piora muito. Mas, a fórmula do presidencialismo de coalizão, ela é dada, ela é como a política brasileira funciona. E o que eu queria ouvir do Sérgio é justamente isso: “Mas vem cá, em que momento político estamos agora?”, ou seja, e muito claramente, essa é logo a primeira pergunta, como vocês vão ver. Jair Bolsonaro chega presidente da república ao final desse ano? O que é que falta para um processo de impeachment? Mas, não é só isso, o Sérgio é sociólogo também. Eu queria compreender um pouco do impacto. A sociedade brasileira mudou, transformou profundamente ao longo da Nova República, que ele chama de Terceira República. Mudou profundamente. Isso nos leva ao fato de que surge uma Direita muito solidamente representada na sociedade, uma coisa que não havia antes. Isso faz com que a gente tenha que viver inevitavelmente uma política que é marcada pelas guerras culturais? Isso era uma outra coisa que eu queria ouvir. Agora, não só isso, o papel dos militares! E também a possibilidade de formação de uma frente ampla: nós conseguimos formar essa frente ampla? Incluindo o PT e incluindo o ex-juiz Sérgio Moro e os procuradores de Curitiba? Será que uma frente assim é possível no Brasil atual? São muitas, as discussões, são muitas as coisas que eu queria ouvir do Sérgio, e eu espero que vocês gostem dessa conversa tanto quanto eu gostei de tê-la tido. Com vocês, Sérgio Abranches. [00:04:00]

(♪) [00:04:01]

Pedro Dória (Meio): Sergio Abranches, muito obrigado por ter aceito o convite para a conversa. [00:04:19]

Sérgio Abranches: É um prazer, sempre é bom falar com você na certa.

Pedro Dória (Meio): Deixa eu começar com um panorama geral, você tem alguma perspectiva do que é que vai acontecer? Você acha que a gente termina o ano com Jair Bolsonaro presidente da república? [00:04:45]

Os crimes de responsabilidade de Bolsonaro são maiores do que os de Collor e Dilma

Sérgio Abranches: Olha, Pedro, isso é difícil dizer porque na verdade as condições objetivas para uma saída do Bolsonaro via impeachment ou mesmo via TSE, estão dadas. Quer dizer, as provas são contundentes e factuais, tanto de crime de responsabilidade, é uma lista grande, muito maior do que a soma dos crimes que levaram ao impeachment do Collor e da Dilma. Ele faz um atentado serial ao código de responsabilidade, ao decoro do cargo, diariamente. Isso tem claramente comprovação de todas as formas. A última foi essa questão de sonegação e administração temerária da questão sanitária, da saúde, da pandemia. Por outro lado, quer dizer, está claro do ponto de vista das pesquisas de opinião e do ponto de vista das manifestações de rua, que ele não tem apoio da sociedade. Ele hoje tem um apoio minoritário, e que é certamente hoje menor do que os 30% que ficaram assim, mais ou menos consolidado como se ele tivesse. Ele não tem mais, ele deve estar aí na faixa de metade disso, hoje, os seus seguidores realmente fieis. E agora, faltam as condições políticas no Congresso. E que condições políticas são essas? Quer dizer, falta a coalizão antibolsonaro se cristalizar no Congresso Nacional, e ela ainda não se cristalizou. E enquanto isso não acontecer, nenhum presidente da câmara, nem o Rodrigo Maia e nem qualquer outro, vai se arriscar a colocar em votação um pedido de impeachment, com muitas chances do Bolsonaro conseguir se livrar desse acordo com o centrão, com a parte podre do centrão, a mais pobre, que é efêmera. Então, falta isso. Ontem na Globo News, a entrevista que o Fernando Henrique, Ciro Gomes e Marina Silva deram em conjunto para a Mirian Leitão, eles claramente mostraram a necessidade da união para consolidar uma frente democrática contra os avanços autoritários de Bolsonaro. Esse é um caminho importante, seja para uma coisa ou para outra, seja por impeachment, seja por impugnação da chapa. Agora, falta evidentemente o convencimento do PT, e o PT está numa posição muito, muito, muito difícil, porque o Lula vetou a possibilidade de participação numa frente democrática, há muitos setores do PT que não conseguem abandonar os ressentimentos em nome de um inimigo comum, e aí é claro, quer dizer, como essa esquerda petista não consegue atualizar a sua concepção de qual é a contradição principal da política brasileira hoje, na Sociedade brasileira hoje. E enquanto o PT ficar fora, uma parcela considerável de oposição à frente sairá também pela Esquerda, porque enfraquece essa frente democrática. E o PT não tem nenhuma outra liderança, fora algumas que estão, que não fazem parte do grupo majoritário que é comandado pelo Lula, não tem nenhuma liderança do grupo do Lula que seja capaz de se manifestar contrariamente à atitude do Lula e abrir uma dissidência, uma discussão dentro do partido sobre um rumo novo do PT no presente e no futuro. Por exemplo, no meu Twitter, várias pessoas, quando eu comecei isso ontem, disseram: “Será? Mas faltou o Fernando Haddad”. Bem, mas faltou porque eles quiseram faltar. Não faltou por falta de disposição de aliança por parte dessas três lideranças que estavam lá. E porque o Fernando Haddad não sabe se impor, não consegue se impor ao Lula, ele não consegue se impor como uma liderança autônoma, e isso mostra a fraqueza política do PT hoje, a incapacidade de gerar lideranças fora da sombra do Lula, e que possa inclusive dialogar com o Lula para tentar convencê-lo de que ele está prejudicando o partido com as suas atitudes pessoais. Então, é difícil dizer se vai até dezembro. Agora, até dezembro que nós vamos ter uma deterioração significativa da situação social e econômica do país, e uma crise política que se agrava, que já é uma crise permanente, já é crônica, mas que nós vamos ter surtos de agravamento considerável dessa crise política com abalos institucionais até o fim do ano e até o momento em que isso se resolva. [00:09:50]

Pedro Dória (Meio): Sérgio, você abriu três caminhos e eu queria explorar os três. O primeiro é a questão da popularidade real do Presidente Jair Bolsonaro. O segundo é a questão dessa coalizão antibolsonaro dentro do Congresso Nacional e o terceiro, a questão específica do PT, que obviamente é muito importante porque é o maior partido de esquerda do Brasil. Raros partidos no Brasil têm a consolidação e o número de raízes pelo país que o PT tem. Então, deixa eu começar pela questão das pesquisas de opinião: existem críticas objetivas metodológicas a respeito da pesquisa do Datafolha que é a pesquisa que mais consistentemente têm mostrado o 33% de ótimo e bom, e as críticas são de que haveria um percentual maior de bolsonaristas do que pessoas que, de fato, votaram no presidente no 2º turno, e isso estaria quebrando o balanço da pesquisa. Agora, as outras pesquisas dão para ele ali por volta de 25%, você tem impressão de que é menos? O que é que te leva a achar isso? [00:11:04]

A metodologia de pesquisa por telefone leva a significativa diferença nos resultados em relação à presencial

Sérgio Abranches: Porque essas pesquisas, como elas são telefônicas, elas não captam quem está sem telefone ou não está podendo atender. Tem uma diferença estatística importante entre a pesquisa presencial e a telefônica, eu já fiz vários testes disso. E há também um problema de consistência entre respostas. Quer dizer, há uma diferença grande entre a pesquisa de opinião e um survey (outro nome para pesquisa quantitativa de mercado), que é um instrumento com que nós sociólogos pesquisamos opinião. No survey a gente faz um teste muito sólido do questionário da amostra com um pré-teste relativamente alto, porque evidentemente faz com que a gente consuma mais tempo para obter respostas do que uma pesquisa que precisa de ter respostas rápidas. A amostragem para telefone é muito diferente dos critérios amostrais que você usa para presencial. Essa transição cria problema para todo mundo. Eu, quando você olha outras evidências, por exemplo, a diminuição nas pesquisas que fazem pesquisa de rede no Twitter, a diminuição da quantidade de pessoas reais impulsionando twits favoráveis ao Bolsonaro e à dominância dos robôs, mostram, por exemplo, uma redução da sua base espontânea de apoio. As manifestações na rua pró- Bolsonaro que tiveram o monopólio da rua durante boa parte da pandemia se mostram cada vez menores, mais rarefeitas, e com traços evidentes de manipulação, quer dizer, de aparelhamento, empresas financiando: as mesmas faixas, você tem uma série de… quem entende de manifestação, tem uma série de evidências ali de que é uniforme demais para ser uma coisa espontânea.

Pedro Dória (Meio): As barracas de camping são sempre as mesmas. [00:13:08]

Sérgio Abranches: São sempre as mesmas, os caminhões, os ônibus, entendeu? Quer dizer, tem ali uma coisa concertada (orquestrada). É claro, você tem, por exemplo, uma parcela do sindicato de caminhoneiros que leva caminhoneiros para lá, como a CUT (Central Única dos Trabalhadores) levava gente para as manifestações pró- PT etc. Mas o fato é que quando você olha o conjunto das manifestações, tem muitas evidências de que o grau de espontaneidade delas é muito menor do que já foi no passado e, certamente, muito menor do que havia, por exemplo, nas manifestações do PT então, durante muito tempo. Então, quer dizer, tem muita evidência fora das pesquisas de opinião mostrando que a base do Bolsonaro está minguando, e à medida que ele vai criando arestas e problemas com os setores mais moderados que o apoiaram por outras razões porque acreditavam na Lava Jato e no Moro, porque achavam que era uma nova política, e aí ele se aproxima do centrão etc., isto tudo vai carcomendo essas bases porque foi uma eleição incidental! Quer dizer, não é uma eleição sólida. A eleição do Bolsonaro é uma eleição incidental no sentido de que em outras condições, ele jamais seria eleito presidente da república. Então, aquela polarização, a falta de lideranças importantes no processo eleitoral, não de lideranças importantes, mas de candidatos, mas de candidatos viáveis no processo eleitoral, é evidente que o Alckmin era uma má escolha para o PSDB. Tudo indicava que o PSDB precisava de uma pessoa mais aguerrida, mais moderna, com um linguajar mais contemporâneo, mais jovem, para poder disputar com força aquela situação polarizada. O PSDB abriu mão. Uma campanha como o da Marina (Marina Silva), por exemplo, que não tinha muita condição de se defender das fake news, porque ela não tinha estrutura digital para isso. Então, você tem uma série de circunstâncias ali que mostram que um candidato que ninguém conhecia, que não participou de debate, que ficou a maior parte do tempo fora da campanha por causa da facada etc., que se elege na verdade assim, quase como um Cacareco (rinoceronte Cacareco que recebeu 100 mil votos em 1959 em eleições municipais em São Paulo), como uma opção quase que de protesto generalizado pela situação em que o país se encontrava, muito ressentimento, crise econômica, descontentamento com a política, com a corrupção etc., juntou tudo isso num caldeirão que produziu esse desastre que é o Bolsonaro.

Pedro Dória (Meio): Pois é. Então, vamos falar do Congresso. De fato, não se consolida no Congresso um movimento antibolsonaro, um movimento: “Olha, essa presidência muito mais do que a presidência da Dilma, muito mais que uma presidência do Collor, esta é uma presidência que não está funcionando”. O que é que acontece? É o fato de a pandemia ter posto a maior parte dos parlamentares em casa e por isso não está havendo conversa? É isso? Ou é algo mais profundo do que isso? Tem evidentemente a questão do centrão, mas antes do presidente começar a negociação com o Centrão, essa consolidação já não estava acontecendo, não? [00:16:56]

Partidos fragmentados dificultam coalizão antibolsonaro

Sérgio Abranches: Claro, veja bem, Pedro, eles continuam conversando. Deputado, político nunca precisou de estar presente para conversar, articular e conspirar. Quer dizer, eles se falam, e mais do que isso, quer dizer, uma das coisas que está claramente tirando apoio potencial ao Bolsonaro no Congresso é o fato de que eles, muitos deles estão em isolamento nas suas bases eleitorais. Portanto, eles ouvem o seu eleitor. E isso eu já vi acontecer inúmeras vezes na política brasileira. O deputado volta, por exemplo, nas festas juninas, nos recessos e tal. Ele volta para casa e quando ele ouve elogios ao presidente, ele volta governista; quando ele ouve reclamações do presidente, ele volta de oposição, ele volta criando caso, ou cobrando mais caro para manter o apoio. Então, hoje as bases estão informando aos parlamentares que esse presidente não tem o apoio deles, e que estão descontentes com esse presidente. Por outro lado, porque hoje formar uma base qualquer no Congresso é muito difícil. É muito difícil porque essa eleição, ela foi atípica em duas dimensões. Ela foi atípica na eleição do Bolsonaro e ela foi atípica na fragmentação do sistema partidário muito além do previsível, quer dizer, com uma redução dramática do tamanho das bancadas dos grandes partidos, sem que tivessem que ser substituídos por outros. A gente conhece muito casos de realinhamento partidário na história de todos os países, em todas as democracias em que a decadência dos partidos leva à sua substituição por outros partidos. Então você passa a ter uma outra configuração de forças no Congresso. Aqui não, aqui, o que a gente teve foi uma quantidade enorme de bancadas, entre 20 e 40 deputados, se somar esses caras, cada bancada dessas com lideranças personalistas, que querem aumentar o seu prestígio, que são rivais uma das outras, etc., juntar tudo isso num mesmo bloco, é muito difícil, envolve muita sabedoria, muita liderança e muito gasto fiscal. E muito gasto fiscal. Então, as condições estruturais hoje do Congresso não são boas para produzir uma coalizão de governo, mas elas são razoáveis para produzir, por exemplo, uma liderança igual a do Rodrigo Maia, que consegue passar pelas fronteiras partidárias porque já se elegeu numa coalizão mais plural, com o apoio de participações da Esquerda. Então ele responde muito mais, evidentemente, à sua coalizão interna, do que ao governo. E se a gente reparar bem, o Rodrigo Maia veio caminhando de uma posição quase governista para uma posição de neutralidade para uma posição de oposição. Quer dizer, o Rodrigo hoje está claramente fazendo parte, senão da articulação concreta, do apoio silencioso a essa formação de uma frente democrática contra o Bolsonaro. E se insurge sistematicamente contra as decisões do Bolsonaro, a última foi essa coisa de sonegar os dados da pandemia pelo Ministério da Saúde, em que o Rodrigo Maia disse assim: “Se precisar, a gente se agrega”, quer dizer ou seja, contrapondo realmente, frontalmente ao governo, e se colocando como possibilidade de alternativa. Eu até espero que nessa questão da pandemia o General que está intervindo, que é o interventor no Ministério da Saúde seja processado, que seja processado na Justiça comum, por administração temerária e falsidade ideológica, que é o que se trata, e então… e o Bolsonaro é mais um crime de responsabilidade, quer dizer, nós estamos numa situação não é de governo disfuncional, mas de disfuncional beirando à marginalidade. Beirando à marginalidade, desobedecendo à Constituição seguidamente e traindo às necessidades da população. Então, numa circunstância dessa, é muito difícil ter um apoio sólido no Congresso. Vai ser um apoio efêmero, vai ser um apoio tipo chantagem, quer dizer, tipo sequestro, ele vai ter que pagar repetidamente aos poucos apoiadores que tem para conseguir evitar, para conseguir manter porque está difícil, ele não tem hoje os 172 votos necessários no mínimo, para barrar por exemplo um pedido de impeachment, ou uma autorização para que ele seja processado.

Pedro Dória (Meio): Agora, historicamente, Sérgio, impeachment no Brasil nos dois momentos em que ocorreram, a gente sempre teve, no caso da Presidente Dilma, ela tinha 9% de ótimo e bom no IBOPE, no caso do Presidente Collor, 11%. E tínhamos em ambos os casos, maciços protestos de rua. Eu imagino que maciços protestos de rua não sejam necessários, mas a gente está numa situação muito atípica, porque o IBOPE, por exemplo, não vai fazer pesquisa de popularidade enquanto não puder botar gente na rua, e não há condições de botar gente na rua em segurança nesse momento. O Datafolha escolheu fazer por telefone, tem todos os problemas que você indica. Quer dizer, a gente está numa situação muito difícil, que é uma situação na qual a gente ainda tem a perspectiva de uma pandemia que vai matar no Brasil por alguns meses, quer dizer, há uma certa urgência de mudança da política de governo para a lida, uma mudança hoje ainda seria capaz de salvar muitas vidas, e no entanto, por conta das circunstâncias da pandemia, a gente não consegue ter os dois elementos, a pesquisa de opiniões e as manifestações de rua, que tradicionalmente levam a um impeachment. Parece ter travado de uma maneira meio insolúvel, não? [00:24:01]

A eleição de Bolsonaro foi uma ruptura eleitoral e a situação atual é atípica

Sérgio Abranches: Olha, tem um impasse. E a gente vai ter que ver como é que esse impasse se desdobra, qual é a força dele nos desdobramentos no tempo. Agora, você conhece bem história, e você sabe que tem momentos na história em que o passado nos informa muito pouco sobre o presente. Nós estamos numa situação muito excepcional.

Pedro Dória (Meio): Sem referências. [00:24:28]

Sérgio Abranches: Quer dizer, nós estamos sem referências. Quer dizer, então, eu não sei se o que funcionava antes, vai funcionar agora, entendeu? Eu me lembro de um seminário que eu fiz um pouco antes do início da pandemia, na UFMG, Departamento de Ciências Políticas, devia ter lá uns 20 ou 30 politólogos, e estávamos discutindo exatamente a eleição do Bolsonaro, o que é que o Bolsonaro devia saber, o que é que nós sabíamos sobre o funcionamento da política brasileira, que o Bolsonaro deveria saber para fazer uma boa presidência, ainda que de Direita, contrária ao nosso pensamento e tal. E havia consenso, entre os especialistas, de que nas condições em que ele se elegeu e nas condições que ele estava naquele momento, não havia possibilidade de ele terminar o mandato. E eu disse: “Olha, eu também acho. Pelo meu modelo ele vai perder o mandato, não tem dúvida, todas as características que eu identifiquei no funcionamento do presidencialismo de coalizão indicam impossibilidade de continuidade de mandato do presidente”, mas no meu modelo, ele também não teria sido eleito, e no modelo de ninguém, tá certo? Quer dizer, então, tanto a eleição dele é um fato excepcional, atípico, sem referência, foi uma ruptura com o padrão eleitoral que vem desde a eleição de Fernando Henrique até a reeleição da Dilma, e por outro lado, quer dizer, com a pandemia e com essa crise econômica desse jeito, e com o Congresso fragmentado de um jeito que ele nunca foi, com bancadas muito pequenas, sem nenhum partido pivô, sem um partido grande, o maior partido é o PT e é um partido relativamente pequeno em relação ao que ele já foi, PT, PMDB (atual MDB), PSDB e PFL, agora DEM, já tiveram de 90 a 100 deputados no passado e hoje estão ali entre 20 e 40 e poucos, 50. Quer dizer, é uma situação muito atípica, então a gente não sabe como é que as coisas vão se dar. Por outro lado, nós nunca tivemos um envolvimento tão profundo dos militares na política, depois do fim do regime militar, como agora, quer dizer, com os militares se prestando de intervir no Ministério da Saúde no meio de uma pandemia, contra o interesse coletivo, nunca vi isso. Quer dizer, os militares sempre tiveram uma certa… sempre foram ciosos do interesse nacional. E nesse momento, eles estão mostrando um absoluto desprezo pelo interesse nacional, apostando numa facção minoritária e radical da sociedade brasileira. Então, é tudo muito fora do esquadro para a gente poder ter uma coordenada para estimativa.

Pedro Dória (Meio): Tá certo. A gente tinha falado do PT. Eu acho que o PT serve de um gancho para falar não apenas do próprio PT e da própria liderança do Lula, que evidentemente é uma liderança muito importante, como também da questão do ressentimento. O ressentimento se tornou, no Brasil, uma força política extremamente importante. Eu não estou de forma alguma tentando atribuir isso apenas ao PT, porque no bolsonarismo há um ressentimento profundo. Também não estou tentando fazer uma falsa assimetria, acho que são características muito distintas em cada um dos dois. Agora, o principal debate hoje dentro de quem está fazendo os manifestos dos juristas, ou manifesto da frente única, é esse Sérgio Moro e os procuradores da força tarefa da Lava Jato podem assinar ou não o manifesto, porque eles seriam os representantes de um autoritarismo que teria levado a presidência do Bolsonaro. Essa é uma interpretação que eu tenho ouvido com muita frequência de muita gente, e muita gente boa, inclusive, de análise. E eu compreendo por um lado, Sérgio, que há problemas sérios na maneira como o Moro conduziu como juiz vários dos casos, inclusive o caso que levou à prisão do ex-presidente Lula. Ao mesmo tempo há problemas sérios em como o PT, dentro do governo, conduziu durante a presidência da Dilma a política econômica, e no geral a corrupção foi imensa. Mesmo que a gente não tenha parâmetros para comparar com o passado, o nível de corrupção foi imenso. Quer dizer, só o ressentimento de que… o Moro tem problemas? O PT tem problemas, todo mundo tem problemas. Fernando Henrique aprovou a reeleição comprando parlamentares no Congresso, quer dizer, se a gente começa a ir atrás dos problemas diversos, problemas há, e no entanto existe um presidente da república que ameaça a democracia. Se isso não é suficiente para unir todo mundo em cima de uma única bandeira, o que é que é? Você vê perspectiva de o Brasil sair dessa onda de ressentimento? Eu não acho que seja só do PT, não, tá? [00:30:06]

Expectativas não realizadas sucessivamente geram ressentimentos dos politizados enquanto as lideranças da Esquerda não se toleram

Sérgio Abranches: Não, eu acho que não, quer dizer, eu acho que o ressentimento, ele nasce de frustrações sucessivas, expectativas que foram postas. Por exemplo, eu não tenho dúvida de que na coalizão eleitoral, lá na massa de votos que elegeu o Fernando Henrique, que elegeu o Lula, e que elegeu Dilma, tem uma parcela grande de interseção, você teve gente que votou no Fernando henrique se frustrou; votou no Lula, votou na Dilma, se frustrou e votou no Bolsonaro. Quer dizer, esse contingente grande da sociedade brasileira, que é o contingente menos politizado e etc., ele tem reagido crescentemente de forma frustrada. E a frustração gera ressentimento. Por outro lado, tem um certo sentimento de purismo dentro do PT, com o qual eu sempre tive muito problema, e esse é um problema histórico da Esquerda, outras esquerdas de outros países cometeram, mas no Brasil particularmente agudo, o problema. Que é a incapacidade de reconhecer quem é o inimigo principal em cada circunstância histórica e se aliar com as pessoas erradas. Então, a falta… e eu acho que isso tem a ver com a forma pela qual se formaram as lideranças políticas, sobretudo pela Esquerda, durante o regime militar e posteriormente ao regime militar. Quer dizer, não há fontes de formação de lideranças que tenham, que produzam lideranças democráticas. E a liderança democrática, por definição, ela é tolerante em cada momento, com aqueles que foram seus adversários no passado, mas que são importantes como aliados para combater um inimigo novo e mais ameaçador. Você sabe bem, você conhece bem história, Pedro. Roosevelt, Churchill e Stalin não se gostavam! E tinham projetos integralmente diferentes entre si. E não obstante passaram por cima de todas as suas desavenças, para chegar contra um inimigo principal, que era o Hitler, que era o nazismo. Quer dizer, tem uma hora na história que você não tem dúvida de que lado que você deve estar. E eu acho que a Esquerda brasileira duvida de vez em quando de que lado que deva estar e toma o lado errado, toma posições que agravam a situação, que depois se viram contra ela mesma. Quem é que vai ser um perseguido num recrudescimento autoritário no Brasil? O PT! É óbvio que é o PT. Então até por questão de sobrevivência partidária, eles deviam tomar consciência de que é preciso um novo rumo. Por outro lado, essa questão você falou do passado, a ideia de que o impeachment da Dilma com uma narrativa de golpe seja suficientemente forte para evitar que o partido faça uma autocrítica com a corrupção que ele efetivamente abrigou, que ele tolerou, no mínimo, mas vou dizer, nenhum líder do PT se aproveitou pessoalmente da corrupção, se aproveitou apenas politicamente da corrupção, mas permitiu que houvesse a corrupção. E por uma razão que no começo parecia ideológica, eu me lembro de uma frase do José Dirceu dentro do PT que ele dizia o seguinte: “Olha, é o seguinte: a gente toca o nosso projeto de poder e compra esses corruptos. E eles nos deixam trabalhar até que a gente mude as condições objetivas que possam fazer, nos permitir nos livrarmos deles”. É a área ideológica ingênua, é politicamente ingênua, esses não são facilmente descartáveis como a gente está vendo. Quer dizer, eles foram o sustentáculo de todos os governos pós-1988. Então, esse ressentimento, esse apego a determinadas questões, que de fato são controvertidas, eu particularmente acho que os dois impeachments, tanto da Dilma como do Collor, foram absurdos do ponto de vista das regras, um não foi igual ao outro. Quer dizer, tem uma quantidade absurda de questões que de fato devem ser consideradas até para que nós tenhamos um novo mecanismo de impeachment e um novo mecanismo de afastamento de presidentes que não sejam o impeachment, tipo recall, por que? Teve arbitrariedade nos dois casos. Teve muito mais arbitrariedade no caso do Collor. Collor foi afastado com muita rapidez, o Supremo aceitou que a Câmara fosse a denunciadora, e portanto o Senado só julgasse. Então, ele se afastou logo que a Câmara aprovou o impeachment, e no caso da Dilma não! Quer dizer, o Supremo mudou a regra e disse: “Não, não. Só o Senado conta por causa da Constituição”. Que eu considero particularmente uma interpretação equivocada da Constituição do ponto de vista, digamos, da Teoria do Estado. Mas o fato é o seguinte, quer dizer, o impeachment da Dilma não pode ser empecilho para que o PT faça uma revisão da sua política, se torne um partido mais contemporâneo, tanto na sua visão econômica, quanto na sua visão social, quanto na sua visão político ideológica, que o coloque como um ator importante nos desafios do século XXI. Eu não acho que a gente possa prescindir do PT nesse momento, eu acho que o PT é fundamental como forma de mobilizar a Esquerda da sociedade, e é a principal força da Esquerda brasileira. Eu passei a minha vida toda na Esquerda, passei a minha vida toda na Esquerda, e eu passei a vida toda com os partidos da Esquerda, por causa dessa rigidez da mentalidade rígida que não permite ser mais adaptável às circunstâncias e à realidade. Então, isso aí piora o impasse, voltamos ao que a gente estava falando no começo. Fica difícil você reunir as condições objetivas para efetivamente enfrentar a disfuncionalidade do governo Bolsonaro, se nas oposições você tem uma divisão tão profunda que impede as lideranças de conversarem entre si.

Pedro Dória (Meio): Sérgio, e o futuro? O que eu quero dizer é o seguinte, você citou uma questão importante, que é a questão dos afastamentos. Você é o cara que criou a fórmula do presidencialismo de coalizão. O nosso problema não é problema na Nova República, Getúlio Vargas se suicidou; para empossar JK foi difícil pra cacete – e quase houve um golpe de Estado – janio Quadros renunciou, e João Goulart sofreu, de certa forma, dois golpes, o primeiro que foi o golpe da imposição do parlamentarismo, tudo bem. Podemos questionar se foi um golpe ou não, mas foi uma mudança de regras com o jogo andando, é no mínimo alguma coisa tipo um jogo duro constitucional, não tinha o termo na época, e há o golpe de fato em 1964. Quer dizer, nos dois períodos democráticos que nós tivemos, sempre aparece esse momento em que presidentes da república perdem a capacidade de governar. E algo tem que acontecer institucionalmente para que eles sejam afastados, ou pelo menos de alguma forma ali entre o encontro entre sociedade e forças políticas chega-se a essa conclusão. O problema está no presidencialismo de coalizão? Que de certa forma já existia na República de 1945? O problema está além disso? Como é que você lê essa situação? [00:38:40]

Presidenciaiismo de coalizão 2.0 obriga o presidente a buscar alianças no Congresso que incluem necessidade de reformas constitucionais, o mecanismo de recall e impeachments

Sérgio Abranches: Tem uma diferença grande entre o modelo analítico do presidencialismo de coalizão, que eu montei para analisar uma realidade que a gente tem, e o funcionamento concreto do presidencialismo de coalizão. Houve muita diferença entre o presidencialismo de coalizão do que eu chamo de Segunda República, em relação a essa Terceira República, de 1988. O presidente agora é mais forte, quer dizer, os mecanismos de freios e contrapesos foram consideravelmente melhorados na Constituição de 1988 em relação a 1946 e enfim, tem uma série de diferenças entre os dois, até a ponto que eu chamei de presidencialismo de coalizão 1.0 e agora nós estamos no 2.0. Ambos tinham um problema complicado, que é de como é que você remove um presidente disfuncional, que perdeu a base, que não tem mais condições de governar? Na República de 1946, os militares removeram em todos os casos, na verdade quer dizer, o suicídio do Getúlio tem por trás uma imposição de militar de afastamento, no caso do Juscelino foi preciso um contragolpe do Marechal Lott para evitar um golpe contra o Juscelino, impedir que ele tomasse posse. No caso do parlamentarismo havia claramente um veto militar à posse do Jango (Joâo Goulart), e finalmente em 1964 os militares junto com lideranças políticas civis, deram o golpe definitivo. A República de 1988 é mais estável do que a República de 1946 por causa dessas diferenças dos mecanismos institucionais. Mas ambas têm esse problema complicado, que é como é que você remove um presidente. E aí, quer dizer, não é só uma questão de remover, sabe, Pedro? É uma questão de que por que nós temos uma situação muito heterogênea, com um federalismo muito desigual e uma série de características estruturais da sociedade brasileira, fazem com que os sistemas partidários estaduais não sejam iguais ao sistema partidário nacional. Então, o presidente da república, com um partido, não consegue fazer a maioria no Congresso, não vai conseguir nunca, enquanto não mudarem essas condições sociológicas da sociedade brasileira. Então, ele precisa de fazer a coalizão, ele precisa de uma aliança para governar. Claro, essa necessidade da aliança, ela produz obviamente uma certa instabilidade ao presidencialismo, não é a mesma coisa de você ser um presidente americano, que como o Trump não tem maioria na Câmara, já houve caso inclusive de presidente que não tinha maioria nem na Câmara e nem no Senado, e que governa de boa, porque as funções são muito claramente separadas. O presidente não precisa do Congresso para fazer o que ele pode fazer, para cumprir as suas atribuições presidenciais. Só há um momento de interdependência, que é na hora na votação do orçamento. E isso tem que ser negociado, mas fora disso, o presidente realmente não precisa do Congresso nos Estados Unidos. E aqui no Brasil é impossível, porque nós temos um tipo de Constituição, um tipo de tradição legislativa legal que obriga o presidente a ir ao Congresso buscar medidas legais para fazer as suas políticas públicas. A Constituição brasileira tem política pública em excesso embutida nela. Então, se você quer mudara política que está na Constituição, você tem que fazer reforma constitucional. Então, esse tipo de aliança torna muito difícil mesmo governar, e a Dilma, quando ela se defendeu do impeachment, ela reclamou disso, ela disse: “Olha, o Fernando Henrique e o Lula tinham coalizão muito melhores que a minha. Eu tenho uma coalizão ingovernável”. E tinha mesmo! Descontadas as suas habilidades pouco treinadas de lidar com a política, ela tinha uma coalizão grande demais e heterogênea demais, amorfa demais para dar certo. Eu acho que agora, com essa experiência que a gente está tendo, um terceiro governo do qual se fala claramente de impeachment, houve pedido de impeachment para todos. Houve vários pedidos de impeachment para o Fernando Henrique, houve vários pedidos de impeachment para o Lula, mas concretamente só se falou a sério de impeachment no caso do Collor, da Dilma, e agora do Bolsonaro. E nesse caso, quando a gente olha isso, a gente vê que está faltando alguma coisa aí. Eu diria que está faltando um mecanismo tipo recall, e eu acho que está começando a ficar claro, diante da força que o presidente tem, a gente está num regime hiperpresidencialista, o presidente tem força demais, ao mesmo tempo ele tem força de menos porque ele precisa do Congresso demais. Essa situação é uma situação esdrúxula, alguns colegas meus acham que ela é boa, foi ela que produziu o fortalecimento, a estabilidade do presidencialismo de coalizão. Eu acho que ela tem elementos de disfuncionalidade claros. Então, eu estou começando a ficar mais simpático à ideia de fazer uma transição para o modelo português de fazer um semi-presidencialismo com… que na verdade não vai ser o modelo português, vai ser mais parecido com o modelo francês. Um presidente que tem digamos, funções estratégicas importantes, cuida da política externa, mas o governo cotidiano, a rotina de governo e as políticas públicas domésticas ficam a cargo de um primeiro ministro ou de um coordenador de governo, alguma coisa assim. E por que? Porque aí eu acho que é mais fácil de você mudar. Com essa fragmentação que a gente tem, é impossível para o presidente trocar alianças, que era outra possibilidade que ele podia fazer como os primeiros ministros podem fazer. Mas não tem sobra! Como você precisa de ter uma aliança que te permita mexer com a Constituição, ou o quórum necessário para você se salvar de um processo ou de um impeachment, a aliança é tão grande, que só fica os totalmente incompatíveis com o governo de fora. Então, se o presidente precisa de repente de abandonar certos aliados que não estão funcionando e trazer outros, ele não tem como trocar alianças dentro do seu campo. E essa rigidez da coalizão brasileira, ela produz um impasse que acaba só sendo resolvido por uma ruptura institucional. Eu acho que o impeachment é uma ruptura institucional. Eu acho que o impeachment é um instrumento exótico, porque o presidente, ele é eleito pelo povo, ele é eleito pelo voto direto popular. Ele não é eleito pelo Congresso. Essa é a diferença fundamental que eu acho entre o primeiro ministro e um presidente. O primeiro ministro é eleito pelo Congresso, quer dizer, os partidos são eleitos pelo povo e a maioria do Congresso que consolida um primeiro ministro. Então, o mandato dele pertence ao legislativo, pertence ao parlamentarismo. Então isso é o parlamentarismo, o mandato do presidente pertence à sociedade, ao eleitorado. E aí, há um momento em que o Congresso se substitui ao eleitorado para decidir se o presidente fica ou não. Por isso que eu acho que o recall é o instrumento mais legítimo e mais intrínseco, mais próprio, mais endêmico, para usar uma metáfora ecológica, ao presidencialismo do que o impeachment. Quer dizer, o recall, você devolve, você pergunta de novo para o eleitor: “Vocês querem continuar com esse cara?”, aí o eleitor diz: “Não, não queremos mais”, e aí troca. Foi assim que o Schwarznegger foi eleito governador da Califórmia.

Pedro Dória (Meio): Eu morava lá quando aconteceu. E a Califórnia trata com muita naturalidade a eleição recall, você faz um abaixo assinado, se x por cento da população assinar, só pode convocar uma eleição recall por mandato, porque senão também ficava, e esse x% acho que é 50+1. Se 50+1 derruba o governador, convoca-se nova eleição. Funciona, é um país de 210 milhões de pessoas, é um recall grande. (acha graça) [00:48:04]

Sérgio Abranches: E, é um recall grande, mas a eleição é grande no Brasil, de qualquer forma, então… e eu acho que isso aí põe, o recall, ele seria muito interessante para os politólogos, porque tem uma ideia da qual eu não estou convencido, nunca foi convencido de que o eleitor não se lembra em quem ele votou. Eu acho que o eleitor não se lembra em quem ele votou por inúmeras razões, mas não porque ele se preocupe na hora de votar em quem ele está votando. Aí é que o deputado não tem número, não tem nome, quer dizer, a votação de presidente é uma votação muito grande, nacional. E ele pode mudar de ideia imediatamente. E aí, se ele abandona, o princípio da negação funciona para todo mundo. Quer dizer, se eu voto num cara e passo a detestar o cara na semana seguinte que ele tomou posse, eu esqueço que eu votei nele, quer dizer, eu bloqueio que eu sou cúmplice de ter colocado o cara naquela posição. Então, as pesquisas nos Estados Unidos mostram que o eleitor americano também não é capaz de lembrar em quem ele votou na eleição passada isso tem a ver evidentemente com o dinamismo da sociedade, com o fato de que a sociedade é muito grande, muito heterogênea, tem muitas divisões categóricas, temos conflitos que perpassam a sociedade, tanto lá como cá. Então, eu acho que o recall, ele faz, ele é muito mais apropriado, e acho que ele funciona exatamente para dar vazão a essa frustração do eleitor. Quer dizer, se o presidente prometeu a ele alguma coisa e não cumpriu, e ele está frustrado porque o presidente não cumpriu, ele votaria pelo afastamento. Eu duvido por exemplo, que um recall afastasse o Fernando Henrique no primeiro mandato com o Plano Real a pleno vapor, cumprindo a promessa. Eu duvido que o Lula tivesse sofrido um recallno primeiro mandato.

Pedro Dória (Meio): No Mensalão? [00:50:25]

O recall poderia ter funcionado com Dilma e Collor e funcionaria com Bolsonaro

Sérgio Abranches: No Mensalão, com o bolsa família, com tudo aquilo. E acho muito provável que a Dilma fosse recalled, que ela fosse tirada por uma escolha eleitoral, como eu acho que o Bolsonaro pode ser tirado com o recall, como eu acho que o Collor teria sido tirado com recall. Então o recall, é claro que isso é contrapactual, mas o recall faz mais sentido, e ele mostra mais claramente como é que o eleitorado pensa. E ele dá mais peso de responsabilidade ao presidente, porque se ele sabe que o eleitor pode abandoná-lo e ao abandoná-lo, ele pode ser tirado do cargo, ele não abandona o seu eleitor. E o seu eleitor não é aquela base mínima, aquele núcleo duro de militância que apoia cada presidente, não. São os 56 milhões, é a maioria do eleitorado. Eu tenho visto nas manifestações alguns bolsonaristas dizendo assim: “Nós somos 57 milhões com Bolsonaro”, não são. Não são mesmo, Bolsonaro não tem mais o apoio de todo o eleitorado que votou nele, que o elegeu. Então essa… tem mais a ver devolver o mandato para a sociedade, de que o Congresso. Sem falar no fato de que você diminui a taxa de toma lá da cá, de troca-troca para salvar presidente, que a gente viu acontecer com o Temer e está vendo acontecer com o Bolsonaro.

Pedro Dória (Meio): Claro. Deixa eu usar um pouco do seu chapéu menos cientista político e mais sociólogo. O que o país mudou socialmente durante essa Terceira República, para usar o seu termo, durante a Nova República, é uma coisa imensa. A gente ganhou dois conjuntos de brasileiros novos muito importantes. Um, com um imenso peso econômico que é a população que vai do interior ali Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Triângulo Mineiro, Centro Oeste, que se transformou num peso imenso no PIB brasileiro de 1988 para cá, que tem uma cultura própria, que vive num mundo próprio, e que traz valores, eu não sei se mais conservadores, mas coisas como a cultura das armas, tem toda uma questão e em alguns casos, isso é uma população muito grande evidentemente, mas em alguns casos quando a gente começa a aproximar mais lá para o Norte do país, tem inclusive esse traço de uma certa selvageria no trato com o meio ambiente. Ao mesmo tempo você tem, a gente viu surgir nas periferias urbanas dos grandes centros, uma nova classe média, ainda é uma classe média baixa, mas o comportamento é um comportamento de classe média, eles não pensam mais como pobres, eles não são mais proletariado no sentido marxista. O principal traço deles, não único, mas é a questão da religião, muitos são evangélicos, portanto aí tem um conservadorismo mesmo, portanto aí tem um conservadorismo mesmo, principalmente nas questões envolvendo sexualidade e tal, casamento, criança, educação dos filhos etc., e isso faz com que esteja vivendo num Brasil que tem uma complexidade hoje que jamais teve. É um Brasil cada vez mais parecido com os Estados Unidos nesse sentido, você tem muitos conjuntos de pessoas que vivem dentro de suas próprias culturas que poderiam passar dentro das suas próprias culturas a vida inteira sem saber que existem outros brasis lá fora, conjuntos diferentes de valores diferentes etc. O que é bom por um lado você ter diversidade, esse tipo de diversidade que a gente tem. Agora, o resultado nos Estados Unidos é desde os anos 1960 uma guerra cultural, uma guerra a respeito dos valores mais profundos que as pessoas têm. E parte da eleição do Bolsonaro, ele é um antidemocrático, ele é um totalitário – totalitário talvez não, talvez gostaria de ser – mas certamente um autoritário e tal. Mas independentemente dele, da figura do Bolsonaro, dessa sanha maluca de querer romper a democracia, e que provavelmente romperia se pudesse, a impressão que eu tenho é que a gente está vivendo de fato uma guerra cultural no Brasil, e que o afastamento de Bolsonaro não vai fazer com que essa guerra deixe de existir e às vezes eu tenho a impressão de que ela vai ser o fator dominante da nossa vida política nas próximas décadas. Você acha que faz sentido esse tipo de leitura? [00:55:38]

A nova classe média nas regiões metropolitanas e o campo modernizado trazem um novo arquétipo para o brasileiro

Sérgio Abranches: Pedro, com certeza nós ficamos mais complexos e, com certeza, a formação de uma classe média nas periferias é fundamental e a industrialização do campo também, quer dizer, a industrialização do campo, a profissionalização do campo, a transformação de produto agrícola em commodity global faz uma mudança muito grande, eu já havia olhado isso antes. Quando eu era colunista da Veja, eu escrevi alguns artigos sobre isso. Uma vez eu fui visitar uma cooperativa de produtores de soja no Sul, e numa cidadezinha muito no interior, mas ainda não tínhamos internet naquela época, mas eles exportavam, eram exportadores. E a sede da cooperativa tinha um telefone com satélite de linha direta com Chicago, com a bolsa de commodities. Entendeu? Quer dizer, ele tinha uma conexão já naquele momento. E eu acho que o campo brasileiro moderno, quer dizer, o campo que produz commodities, ele na verdade não é muito bem isso aí que estão dizendo que é, nem bolsonarista por convicção muito profunda, é antipetista com certeza, mas nem muito aberto de sair por aí desmatando e escravizando gente, porque o arquétipo dele é o caubói do Texas. Eu me lembro que uma vez eu fui a aquela cidade lá no Sul que tem o rodeio…

Pedro Dória (Meio): Barretos? [00:57:38]

Sérgio Abranches: Barretos. E um dos promotores lá me levou num lugar assim, mais alto, que via a cidade, o projeto do rodeio, que era uma coisa importante, assim, ele disse assim: “Parece o Texas, né?”. E aí, quando eu olhei para ele, ele estava com roupas importadas do Texas. Ele tinha chapéu de texano, tinha um jeans comprado no Texas, as botas dele eram texanas. Quer dizer, por que? Porque o cara rural do Brasil passado era o caipira, era o Mazaroppi. Podia ser esperto, mas era mal ajambrado (arranjado, organizado, arrumado). E esse cara novo do campo quer mostrar que ele é mais afluente, ele viaja para o exterior constantemente, ele está em contato direto com as bolsas de commodities, ele sabe o que se passa no mundo, mas ele é de Direita e ele é uma Direita moderna e ele sabe que o bolsonarismo tem sido contra os seus interesses. Ele não sabia quando votou nele, quando financiou, mas hoje ele sabe. É a mesma coisa o que se dá nas classes médias de periferia. Eu vou te contar uma história velha de como é que isso é uma coisa que se realizou agora, mas que vem de antes. Quando o Michael Jackson veio gravar aquele clipe aqui no Brasil, no Rio…

Pedro Dória (Meio): O Dona Marta (favela do Rio de Janeiro)? [00:59:15]

Sérgio Abranches: …Dona Marta. A Prefeitura proibiu, disse que ia atrapalhar a imagem do Brasil no exterior etc. e tal e aí foi uma gritaria. E eu me lembro de ter conversado diretamente com o pessoal da Prefeitura e eu disse assim: “Pô. Vocês não estão entendendo nada! Vocês viram a capa de frente do JB (Jornal do Brasil)?”, na época ainda tinha o “Caderno Também (equivalente a Caderno 2 do Estadão)” do JB. “Quem é que são esses caras?”, ele disse não. “Vai lá ver, não é o Michael Jackson para eles, o problema para eles é o diretor do clipe que é o Spike Lee (ver uma foto de Spike Lee). Vai lá ver de que é que eles estão vestidos”. E de fato, tinha uma rapaziada do Dona Marta que tinha se proposto, tinha se voluntariado para ser segurança do Spike Lee e do Michael Jackson, todos eles vestidos de Spike Lee, quer dizer, (acha graça) a roupa era igualzinha a do Spike Lee, a identidade deles já estava com o movimento negro americano. Quer dizer, não é uma visão, eles já tinham essa identificação. Depois eu vi um debate entre dois rapers brasileiros, no começo do rap no Brasil, um de São Paulo e outro do Rio, em que um dizia assim: “Não, ele faz rap de alley.”

(riso) [01:00:28]

A emergente classe política evangélica e o papel do neopentecostalismo

Sérgio Abranches: Entendeu? Quer dizer, nenhum dos dois faz rap de alley, todos eles, os dois fazem rap do Brasil e falam da sua realidade própria. Mas as referência, por que? Porque lá o raper já era uma celebridade, já era respeitado. Então, essa classe média, ela está buscando a autovalorização, ela está aumentando a autoridade dela. Daí porque o movimento negro é cada vez mais forte, e cada vez mais radical. E uma vez eu conversei com o pessoal do movimento negro original, eles falam assim: “Cê não sabe o que vem por aí nessa juventude”. É claro! É uma juventude que tem mais estudo, tem mais informação, tem mais acesso à internet agora etc., e que sabe concretamente que pode conquistar e deve e tem direito de conquistar. E cadê os negros americanos? Eu estou falando disso porque essa classe média de periferia é 90% negra. Os negros americanos que têm muito mais chance econômica, tem muito mais poder e ainda são objetos de racismo, que são 13% da população. Aqui eles são 51% da população e ainda não conseguiram chegar nem aonde os negros americanos chegaram. Quer dizer, é evidente que aí você tem um grau de revolta e de desejo de superação que pode levar a uma ruptura importante. Então, essas mudanças todas, elas são produzidas pelo movimento da sociedade, você tem toda razão de apelar para a sociologia. É um movimento sociológico de mudança que a política não acompanha. A política não consegue acompanhar, a política brasileira sobretudo é muito analógica e ela não conseguiu acompanhar, a americana também, ela não conseguiu acompanhar na mesma velocidade as transformações da sociedade. Então, todos os partidos, inclusive os de Esquerda, sobretudo o PT, representam hoje categorias que estão minguando na sociedade, deixando sem representação as categorias populares que estão crescendo. E é nesse barco que as igrejas evangélicas neopentecostais cresceram. Quer dizer, é nesse pessoal, não está representado, e não tem proteção estatal e não tem rede de proteção social e não tem acesso a nenhum benefício e a igreja vai lá e promete a eles uma coisa pela fé, mas ao mesmo tempo presta uma porção de serviços, quer dizer, todas essas igrejas tiram dinheiro deles, mas ao mesmo tempo também devolvem uma parte disso, é quase como se fosse um imposto em termos de serviço, voluntariado e etc. Então, eles estão ocupando um espaço que não foi ocupado nem pelos partidos e nem pelo Estado. E é isso que é grave, isso vai criando uma situação de lealdades políticas em relação aos objetos errados. Quer dizer, você se torna politicamente leal a uma igreja, que tem muitas vezes um pastor oportunista porque ele oferece mais concretamente o que você está buscando do que o partido ou Estado. Então isso significa que o Brasil precisa de passar por profundas transformações estruturais, e o Estado brasileiro têm que ser sim, reformado. Mas ele tem que ser reformado para poder ocupar os espaços que ele deveria estar ocupando e que ele não ocupa e que ocupa espaços indevidos, tipo subsidiar os ricos, transferir renda para os mais ricos, proteger uma indústria automobilística toda estrangeira como se fosse nacional, quer dizer, coisas doidas. A Dilma impossibilitou os carros elétricos aqui para poder promover e proteger o motor flex, que é muito ineficiente, e que é utilizado em carros importados! Quer dizer, de montadoras que não são brasileiras, entendeu? Quer dizer, não tem nem nacionalismo aí, é um falso nacionalismo, entendeu? O nacionalismo, já não tem em muito lugar. Agora esse falso nacionalismo não tem. Então, o fato de o Estado ser torto, e atender quem não precisa do atendimento estatal e deixar descoberto quem precisa, e o fato de que os partidos são oligarquizados e que só respondem às suas velhas clientelas, não têm noção e nem visão e nem contato com os novos brasis que estão se formando, que são os brasis que estão crescendo, nos deixa em uma situação evidente de que a gente precisa de uma transformação quase revolucionária na política e na sociedade, no Estado, para poder dar conta do novo Brasil.

Pedro Dória (Meio): É engraçado você começar isso, porque eu tenho a impressão de que de 2013 para cá a gente está vivendo uma revolução. Sabe? A gente já está se aproximando, a gente acabou de cruzar aqui a linha da última hora, da uma hora. Deixa eu te fazer uma última pergunta só para crescer um pouco mais o desespero da necessidade de…

(riso)

Pedro Dória (Meio): …de lidar com as questões que a gente não consegue lidar no Brasil, o papel dos militares, Sérgio. Eu achava que tinha acabado o movimento tenentista, que é aquela coisa de ficar entrando, que estou sendo injusto com os tenentes, porque o Deodoro da Fonseca estava fazendo isso lá atrás. Mas essa coisa dos militares, de considerarem que de vez em quando seja através de um golpe de Estado, seja através de uma situação como a atual, de que eles acharem que eles precisam de vez em quando entrar para salvar o Brasil, para resolver o Brasil, e essa insistência, que é uma insistência que já tem mais de século de idade, que eles substituíram o poder moderador do Imperador, (o poder moderador era considerado a chave de toda a estrutura política do Brasil Império) me parece uma das coisas mais apavorantes de descobrir que ainda existem no Brasil, porque é uma força muito poderosa, antidemocrática, coisas de república das bananas. Recentemente eu ouvi um outro cientista político falando isso, e, de fato, é país em que militar de vez em quando se mete. É república das bananas, isso não é uma democracia funcional. Agora, em todas as vezes que a gente teve problemas com os militares, resolver-se na base do “bem, já que o problema não existe mais, deixa pra lá, vamos ficando assim, não vamos provocar demais os caras”. A gente vai ter que enfrentar essa questão dos militares, o Estado brasileiro vai ter que entrar dentro das Forças Armadas e opinar mais a respeito de como que é a formação dos oficiais. Bem, para começar, você acha que a gente tem um problema? [01:08:02]

Os militares têm uma organização vertical hierárquica, não democrática; a política é horizontal e democrática e a preocupante politização da PM

Sérgio Abranches: Eu acho que a gente tem um problema e eu estou perplexo com ele, porque eu participava da… eu nunca estudei os militares, mas eu compartilhava a visão daqueles que estudaram, que os militares haviam se profissionalizado depois do fim do regime militar e que não iam mais se meter em política. E, de fato, durante muito tempo eles fizeram isso com alguns pronunciamentos sobretudo na questão da revisão da Lei de Anistia, da revisão dos crimes da ditadura e tal, em que isso aí eles continuam passando adiante das gerações, para as novas gerações, a narrativa de que é uma guerra, de que não houve tantas coisas assim, que a Esquerda também matava e nunca aceitaram que eles utilizaram o aparelho do Estado como aparelho de tortura e morte de brasileiros, e aí de repente a gente tem essa ruptura com esse padrão profissional, digamos assim dos militares, e eles hipotecam a reputação da corporação a um governo claramente disfuncional, radical, extremista e evidentemente que todos os erros do governo serão compartilhados pelas Forças Armadas, a responsabilidade será compartilhada pelas Forças Armadas. As forças militares, elas têm, como corporação, e pela função que elas cumprem de defesa, quer dizer, de garantir as fronteiras, elas têm uma formação que é baseada fundamentalmente na disciplina e na hierarquia, é uma organização vertical, que não é democrática por definição. Não pode ser. Você não pode consultar um soldado na hora de uma ação, quer dizer, você manda. Então a ideia de comando, etc., faz parte. É exatamente isso que não pode ser transferida para a política, a política. A política é horizontal. A política não pode ter hierarquia e linha de comando central. Isso marca a democracia. Então, essa incompatibilidade, ela faz com que seja necessário que as Forças Armadas tenham de fato imbuídas nela e na sua formação desde o colégio militar, a ideia de que os militares ao adotarem a atividade militar, e ao optarem pela carreira de oficiais, eles devem abdicar da política porque a política é incompatível com os quarteis, não devem entrar nos quarteis. Aliás eles sabem disso, porque se eles forem botar política no quartel, o quartel perde a capacidade da disciplina, e você tem um problema. Então, essa separação entre a corporação e a atividade política devia ser clara. A gente tem alguns entulhos na Constituição que agravam esse problema, quer dizer, que justificam um pouco essa penetração da política no meio militar. Um é o artigo 142, que na verdade não deveria existir. Devia-se definir as Forças Armadas como o que elas são, e esse negócio de convocar Força Armada para a lei e ordem, qualquer coisa, não devia existir, lei e ordem tem que ser uma questão resolvida por uma Força Nacional organizada de outra forma, e agora, o outro, que é muito grave, e que é o nosso problema principal hoje, eu acho que é maior do que os generais que se comprometeram com o governo Bolsonaro e que estão traindo essa tradição profissional das Forças Armadas, é a questão das polícias militares. Os militares fizeram questão de manter as polícias militares sob sua custódia, sob sua… como parte dos aparatos militares, e na verdade não exercem autoridade sobre as polícias militares, que se transformaram em organizações autônomas, que hoje são comandadas por milícias, por… ou conta própria.

Leia como as milícias surgiram com o Professor José Cláudio Souza Alves (o Chião da UFFRJ)

Sérgio Abranches: E você tem coisas gravíssimas como sublevações de PM e politização de PM e etc., que é absolutamente inaceitável. Eu sempre fui a favor do modelo americano de polícia, e que você tem a mesma formação para todo mundo que entra para a polícia, entra uniformizado porque o uniforme é a identificação do agente, do Estado. Você vê que nas delegacias americanas, quando você entra, você não encontra um sujeito de camisa aberta e tal, você encontra um policial fardado, que é o que faz a triagem, que é o que recebe por que? Porque o cidadão está lá falando com o Estado, ele está falando com uma autoridade que tem regras, que vai seguir as regras. Esse desvio está levando a situações complicadas, a gente já teve um problema nos anos 1970 na polícia de Nova Iorque, de corrupção e violência policial que terminou na verdade com a criação de uma nova polícia, teve esse problema na polícia inglesa na Scotland Yard, que também acabou sendo fechada e se criou a New Scotland Yard, que é o que eles têm hoje. Você tem agora Mineápolis (consequências do caso George Floyd) dizendo: “Eu vou fechar a minha polícia e vou pensar em outro modelo”. É claro que o modelo em si não garante, mas o fato de você ter uma base única, e aí quando o sujeito vai fazer polícia judiciária, quando ele vai fazer investigação sem uniforme, aí é porque ele está numa missão em que ele não pode se identificar preliminarmente como um agente do Estado, porque ele está investigando, ele não pode ser visto como polícia, porque aí o bandido foge, é uma coisa óbvia. Agora, a duplicidade de polícias e o fato de que a polícia fardada no Brasil hoje é a pior ameaça que a sociedade tem, porque ela mata por preconceito, ela mata por qualquer coisa, ela tem o dedo passo lá no gatilho. E ela não está, ela não é comandável pelos governadores e não tem uma autoridade militar que também põe disciplina nas polícias militares, nós estamos diante de uma situação explosiva que vai dar problema em algum momento. Já está dando muito, quer dizer, eu estou falando aqui como um homem branco de classe média. Se eu fosse um homem negro, de uma favela brasileira, eu diria para mim o seguinte: “Cara, pô! Você tá pensando o que? Como vai dar problema? Já deu problema, nós estamos sendo trucidados, aniquilados por essa polícia. Eles entram aqui disparando tiro independentemente da idade do que a gente faz, mata! Simplesmente mata!”. Então, esse é um gravíssimo problema estrutural que o Brasil tem que tem que lidar e que o fato de você ter hoje um governo militarizado incapaz de abordar essa questão e tentar resolver essa questão, mostra como é que a participação dos militares no governo Bolsonaro é completamente disfuncional, eles não estão lá sequer para montar uma situação de comando que dê, pusesse sob controle as políticas militares. Então, esse é um problema, o problema militar voltou a existir para o Brasil. Isso é grave! Eu acho que é uma nova forma. Por isso que eu não concordo muito com a ideia de república de banana, eu acho que houve um desvio num padrão de conduta que os militares iam tendo desde 1982, mais ou menos 1984, e a partir daí, e agora eles… os militares abandonaram esse padrão e eles estão hoje com um padrão que a gente não sabe qual é, eu por exemplo ouço dizer de gente que tem contatos etc., que uma parte da corporação na ativa discorda desse envolvimento. E isso vai ficar muito mal, por exemplo, com essa intervenção no Ministério da Saúde, porque essas mortes que estão sendo, deixando de ser evitadas pela omissão do Ministério da Saúde, pela subordinação de um general à vontade de um presidente que não tem cuidados suficientes com a sua responsabilidade para com a sociedade, isso aí vai produzir uma crise militar que eu não sei como é que a gente vai resolver. Eu espero que a gente consiga resolver com sensatez, e que a gente consiga eliminar de uma forma democrática essa militarização das polícias estaduais, que a gente consiga fazer uma reforma do sistema de segurança que faça com que ele deixe de ser predominantemente uma ameaça para a população e se torne fundamentalmente um instrumento da segurança da população.

Pedro Dória (Meio): Não é pouca coisa que tem que ser resolvida, né, Sérgio? [01:18:06]

Existe um capitalismo brasileiro ineficiente na UTI há 40 anos que parasita o Brasil

Sérgio Abranches: Não. A gente acumulou já uma quantidade de problemas e aí que realmente é assim, por uma sucessão de erros governamentais, quer dizer, total falta de clareza dos governos, e eu acho que pela dominância excessiva do capital financeiro, da visão ortodoxa econômica de que as reformas que o Brasil precisa são reformas fiscais, e reformas fiscais sem orientação adequada, quer dizer, nós fizemos vários regimes de austeridade, desde o governo Fernando Henrique. E em momento nenhum a gente mudou a estrutura de subsídios que transferem renda para capitalistas absolutamente incompetentes, improdutivos, que são parasitas que vivem do recurso público. É impressionante, quer dizer, a gente veio do governo Fernando Henrique ( ), passou pelo governo do Lula, pelo da Dilma, todos eles se renderam a essa ideia de que precisa se proteger uma indústria que não nos serve, que não faz, não produz o benefício social e econômico e sob a forma de emprego, de competitividade internacional, compatível com o que nós transferimos para ela. Então, a gente fez austeridade que destruiu o sistema educacional, destruiu o Sistema Úniico de Saúde que deveria ser a arma principal hoje com a qual a gente devia contar para combater a pandemia, na verdade a gente só está combatendo com razoável, quer dizer, tem muita morte que está sendo evitada porque o SUS ainda existe. Mas, obviamente depauperado. Então a gente não deu prioridade às questões fundamentais, que poderia nos ajudar na mudança dessas questões estruturais, e fizemos uma austeridade pró- capitalista, pró- elite, concentradora de renda, e infértil, que a austeridade não produziu nada de bom para o país. Se ela tivesse produzido capacidade de poupança, capacidade de investimento público, melhoria da nossa infraestrutura, mas sobretudo melhoria da nossa estrutura educacional, de saúde pública, de saneamento e de segurança pública, teria valido o sacrifício. Mas nós estamos fazendo há uma década sacrifício, sem obter benefícios por causa dessa visão completamente equivocada de como é que você faz responsabilidade fiscal. Eu sou completamente a favor da responsabilidade fiscal. Mas eu acho que a responsabilidade fiscal, ela tem que ter uma direção, e a direção tem que ser o bem estar da sociedade e não o mercado financeiro, o ganho do mercado financeiro ou a saúde de empresas que estão na UTI há 40 anos.

Pedro Dória (Meio): Sérgio Abranches, muito obrigado pela conversa. [01:20:59]

Sérgio Abranches: Obrigado você, foi um prazer.

Pedro Dória (Meio): Foi ótimo, Sérgio, obrigado mesmo.

Sérgio Abranches: Tá legal, até a próxima, Pedro.

Pedro Dória (Meio): Até então, um abraço.

(♪) [01:21:12]

(fim da transcrição) [01:21:24]

Categorias: Política

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Web aprendiz. Iniciou-se em 2012 na internet em busca de conhecimento. Desde então se encantou com transcrição de áudio.