Bruno Torturra entrevistado por Pedro Dória
207202
Bruno Torturra foi entrevistado por Pedro Dória em junho de 2020, a data precisa eu não sei.
O que é o fascismo contemporâneo brasileiro? Essa talvez seja a busca de Bruno, que não sabe definir bem o que o bolsonarismo e a Nova Direita, seja ela olavista ou lavajatista ou ainda bolsonarista representam.
Bruno vê claramente o fascismo e nazismo presentes desde as manifestações que culminaram nas de junho de 2013, que têm em suas raízes tanto a Primavera Árabe (2010) com o uso massivo das redes sociais, assim como as Jornadas de Junho de 2013 (Movimento Passe Livre), a derrota por 7 a 1 da Copa de 2014 e finalmente o lavajatismo como de certa forma as sementes de uma nova Direita bolsonarista.
A democracia brasileira está em perigo? O que significou o movimento dos black bocs em 2013? Quais os paralelos entre o movimento que levaria à derrocada de Dilma e a Marcha por Deus e pela Família de 1963 contra Jango, que culminou com o movimento de 1964 e o nascedouro do Período Militar do Brasil pós-1964?
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Esta transcrição faz parte de um esforço pessoal do autor em entender o fenômeno Bolsonaro, as milícias e sua ascensão e uma tentativa de busca de evidências que permitam desenhar um possível cenário político para o ano de 2022.
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[207202] Conversas com o Meio Bruno Torturra hQLFbteuJPU (77,5 min)
(início da transcrição) [00:00:00]
Pedro Dória (Meio): Olá. Meu convidado essa semana é um jornalista: Bruno Torturra. O Bruno é um cara que a gente é mais ou menos da mesma geração, ele começa a carreira dele pela imprensa tradicional. Mas em um determinado momento, bastante cedo até, ele decide abraçar a imprensa alternativa. Mas, não é um mero abraçar a imprensa alternativa, como muita gente abraça, de às vezes de uma forma partidária, às vezes de uma forma militante. O Bruno é um cara que tem por característica ser profundamente reflexivo, tanto como editor, como quando repórter. Quando ele vai para a rua ver algum tipo de coisa, ele não está apenas reportando, narrando eles fatos. Simultaneamente ele está consistentemente pensando, refletindo, tentando entender o que é que aquela história quer dizer num arco maior. Ao mesmo tempo, como ele está constantemente pensando no ato do fazer jornalismo, como é que… o que é que o digital transforma? Como é que você pode reinventar o jornalismo? Que tipo de jornalismo é necessário perante o mundo que vive estes fenômenos? Ele é um dos fundadores do Mídia Ninja, e por conta dos censuradores do Mídia Ninja, ele viveu intensamente as manifestações de 2013 e, aliás, não parou ali, ele continuou acompanho manifestações, desde então nesse momento que o Brasil entra naquele túnel de 2013 (Jornadas de junho de 2013) e vai desaguar na presidência de Jair Bolsonaro. Eu estava há algum tempo querendo ter essa conversa com o Bruno. E de repente calhou de ser justamente na semana em que pela primeira vez os grupos antibolsonaristas e bolsonaristas se encotraram na Avenida Paulista (leia reportagem de 05/06/2020) nessa circunstância da pandemia (Pandemia de coronavírus). E foi uma sorte, na verdade, não era o plano, mas uma sorte extremamente fortuita, justamente por ser alguém que conhece tanto de manifestações, da mecânica de manifestações, da lógica, e que as enxerga com um olhar de ritual mesmo, de quais são os muitos significados que existem por trás daquele grupo de pessoas que se encontram na rua para falar de algum tema a respeito da vida pública. O Bruno hoje toca um projeto pessoal dele, que é o Estudo de Fluxo, além, claro, de ser um dos cabeças do Greg News. Mas eu não quero de forma alguma, como nunca quero, impedir demais, atrasar demais a vinda dessa conversa. Então, com vocês: Bruno Torturra.
(♪) [00:02:59]
Pedro Dória (Meio): Bruno Tortura, muito obrigado por ter aceito o convite dessa conversa.
Bruno Torturra: Claro, é um prazer.
Pedro Dória (Meio): Cara, eu quero começar pelo nosso domingo (04/06/2020). A gente teve uma novidade no domingo. Pela primeira vez, tanto no Rio quanto em São Paulo, aliás de certa forma de mais intensamente em São Paulo, houve grupos pró- democracia antibolsonaro nas ruas. É claro, a gente está numa situação que por conta da pandemia, a reclusão social é recomendada, o presidente da república ignora o fato de que estamos numa pandemia, então talvez fosse até natural a gente estar nesse momento que grupos antibolsonaristas não estavam na rua, mas grupos bolsonaristas estavam. Mas ontem, com movimentos contra racismo no Rio de Janeiro e com as torcidas organizadas Corinthians, Palmeiras e Santos na Avenida Paulista, isso mudou. [00:04:02]
Bruno Torturra: Mudou.
Pedro Dória (Meio): E houve algum tipo de situação que ainda pelo menos para mim não está muito clara, mas houve certamente algum tipo de conflito entre a PM e o grupo antibolsonaro, e não entre a PM e o grupo bolsonarista. Qual é a sua leitura do que aconteceu ontem? Como é que você vê a coisa? Você entende de manifestação popular. [00:04:33]
Como Bruno vê as manifestações e o confronto entre a tropa de choque da PM e os antibolsonaristas?
Bruno Torturra: Eu entendo um pouco. Eu fui em muitas e fui em todo tipo de manifestação, de Esquerda, de Direita, bolsonaristas, antifas, feministas, Marcha da Maconha. E vou te falar, assim, estava muito previsível o que aconteceu ontem. E eu acho que a cena para a gente entender isso, que é muito significativa, foi antes de começar as bombas, antes das bombas começarem a explodir, tem uma cena que a Globo News fez de cima, do helicóptero, que você via bem que tinha uma tropa de choque que estava só de um lado, muito antes de tudo começar. Tinha uma tropa de choque, que estava atrás da linha dos policiais que, viam os manifestantes pró- democracia e antibolsonaro. Eu moro na frente deles, eu estou aqui, eu vejo toda manifestação. Toda manifestação, eles estão na minha porta de casa e eu te digo, nunca veio o choque nas manifestações do Bolsonaro, eles nunca estão nem nas redondezas, eles não ficam de prontidão na praça, eles simplesmente não aparecem. E a Polícia Militar sempre chega antes, e eles param antes ou é trânsito, ficam absolutamente juntos dos manifestantes e isso é um fenômeno que vêm acontecendo há muitos anos. E acho que agora ele… acho que ontem a coisa mais significativa que aconteceu foi que isso ficou muito claro, está bastante óbvio. Aconteceu no Rio, a gente tem vídeos que a gente vê deputado falando com o cara da Polícia Militar que eles iam atear fogo na bandeira e tal. E em São Paulo aconteceu isso, que foi uma provocação clara que aconteceu, isso é evidente, de os bolsonaristas, gente com uma bandeira bastante estranha, que foi lá, foi lá no meio deles e foram escoltados de maneira muito pacífica pela própria polícia. E aí, naturalmente o conflito começou. Pelo que eu vi, as primeiras bombas saíram da Polícia Militar. Mas vamos dizer que mesmo que houve algum arremesso de alguma coisa, uma garrafa de água, uma pedra pequena, alguma coisa, isso não justifica de modo algum o volume de bombas que foi arremessado, mas muita bomba! A tarde inteira bomba! Muito alta, gás na vizinhança, as pessoas em casa se sentindo sufocadas, que é algo que a gente esquece, esses gases são tóxicos, eles se espalham por grandes áreas. Então não há qualquer tipo de equivalência possível entre algum vandalismo ou alguma violência que os manifestantes possam ter cometido, após a repressão, ao que o Estado segue fazendo. Então, eu acho isso é base assim. Outra coisa, que para mim é muito chocante, isso para mim é uma questão muito perturbadora, a gente está numa pandemia. Tipo esse pano de fundo, ele não é um pano de fundo, ele é um piso; ele não é um cenário, ele é um chão na qual a gente está pisando. E isso virou algo menor agora. Então, eu acho que isso é uma grande novidade, eu acho que por um tipo de terror na cabeça de quem está prestando atenção nisso, muito inédito, que não é uma crise simplesmente, é política. Eu confesso que antes também dos manifestantes irem, e eu ainda estou em dúvida em relação a isso, eu não estava achando uma boa ideia de ter manifestações antibolsonaro dessa forma agora. Mas eu compreendo também, eu também não consigo escrever falando que eu não acho uma boa ideia, não me pronunciei disso, porque eu achei muito delicado e eu acho que nessa hora as pessoas tem que fazer o que elas sentem que é urgente de fazer por ter muita coisa em jogo. E eu ainda não sei no que é que isso vai dar, porque de algum jeito ontem eu senti isso também, você justifica muito o endurecimento da polícia, do Estado. Mas ao mesmo tempo ser pacífico em relação ao que está acontecendo é muito difícil. Mas eu insisto, eu acho que o fenômeno que eu acho mais grave é a Polícia Militar se tornando militante e não militar. É a Polícia Militar não aceitando mais o comando civil e se vendo como a face do Estado autônoma. Autônoma e alinhada com a ideologia do Bolsonaro e dos manifestantes antidemocráticos. E aí, só para encerrar essa resposta, sim. Eu acho que outra coisa muito significativa que eu escrevi ontem, vi que você até espalhou também, assim, o Bolsonaro ontem foi num cavalo…
Bruno Torturra: …ele subiu num cavalo para falar com o povo que o apoiava, e o cavalo não era do Exército, era da Polícia Militar. E acho que o sinal está muito claro, onde ele vê a sua força armada, onde ele vê uma capilaridade possível de reprimir a dissidência dele, e de assustar as pessoas que poderiam ser a sua oposição. Esse grande varejo da violência, que a Polícia Militar representa no Brasil, é de onde o Bolsonaro sai. Essa autonomia é violenta, é o que ele sempre representou, tanto no Exército como depois com a sua relação com as milícias cariocas.
Bruno Torturra: E agora a gente está vendo o Estado assumindo isso de cima para baixo e não de baixo para cima, mais. Então há um encontro do baixo escalão que sobe e agora do alto escalão que vai de encontro ao baixo. E isso é onde eu acho que a ameaça está mais colocada, e isso não é claro onde isso pode dar, de que forma que uma ruptura se dá. Então, eu estou muito perplexo, não sei muito o que falar também, eu hesitei muito em falar e fazer uma transmissão ontem, que muita gente estava a fim de escutar o que eu estava achando disso tudo, mas eu ainda estou observando assim.
Pedro Dória (Meio): Eu acho perfeitamente razoável observar. Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo e processar tudo dá um certo trabalho e tem uma margem de erro natural de qualquer tipo de análise.
Bruno Torturra: É.
Pedro Dória (Meio): Você citou um ponto que eu acho muito relevante e que raramente eu acho que muitas pessoas não têm noção disso. Quem já experimentou gás lacrimogênio e gás pimenta, sabe o quanto que você fica profundamente desorientado quando você… você é obrigado a fechar os olhos, tem um monte de coisa acontecendo ao seu redor. No entanto se você abre os olhos, a única coisa que bate é no caso gás pimenta é a ardência. Gás lacrimejante você não para de lacrimejar, você fica cego em essência, enquanto tem uma…
Bruno Torturra: E você não respira bem. Não respira.
Pedro Dória (Meio): E você não respira bem. E tem uma pancadaria acontecendo ao seu redor. Quer dizer, você não consegue se defender. Quer dizer, é uma arma muito poderosa para você evitar que manifestações se tornem mais violentas, mas por outro lado, quando a polícia está sendo muito agressiva após jogar isso, você está atacando um bando de gente que não tem como se defender, né? [00:12:55]
A PM usa bombas químicas perigosas contra manifestantes, isso é normalizável?
Bruno Torturra: É sim. E uma coisa que a gente esquece, que eu acho que a gente tinha que ter tipo esse papo há muitos anos, quando a polícia começou a atirar gás indiscriminadamente antes de junho, na verdade, foi em 2011 que eu estava numa manifestação que houve uma nuvem de gás, e assim, não são só os manifestantes. É gente que está andando na rua, gente que está passando, as pessoas que moram nos apartamentos e tal. E a gente esquece de algo muito central nisso, é altamente toxico (nota: em grandes concentrações), é cancerígeno (nota: não encontrei referência a ser cancergênica), é perigosíssimo para quem tem problema pulmonar, para quem tem asma, para quem está grávida, para quem é idoso. É uma arma química (nota: classificado como arma química, surgiu em 1933), é um tipo de arma química de baixa intensidade, se você for comparar com uma arma química mesmo, mas é algo muito toxico. E tem uma recorrência que a gente vive hoje, que é o sufocamento. A covid, é o joelho, a gente está falando sobre respiração. O George Floyd foi assassinado não conseguindo respirar. Essa doença (covid) que a gente vive tem a ver com falta de ar, com respiração. A gente sente que tem um sufocamento social um pouco metafórico. E o gás lacrimogenico que vai no pulmão. Então a gente até tem esse caráter, que acho que é importante de falar mesmo. Eu tenho asma, por exemplo, e um dos motivos que eu saí da rua em junho foi ter respirado tanto gás que eu não dormia mais por causa de asma. Eu tinha que… não conseguia ficar deitado mais, tinha que sentar para conseguir respirar. Isso assim, dias e dias após ter ido em manifestação, porque eu respirei muito gás. Então, a gente esquece disso também, que acho o ponto que a gente não consegue discutir assim. É uma coisa toxica! E a polícia não joga uma, duas bombas, ela joga centenas (acha graça) de bombas, cara. Mas assim, é muito! Elas custam caro também, elas custam 1.000 reais uma bomba de gás que a polícia usa, é uma fortuna! (Leia reportagem sobre quanto custam armas não letais) E eu não sei assim, eu senti o cheiro de bomba na minha casa, já. Entendeu? E isso que eu moro alto. Imagina as pessoas respirando isso. A gente naturalizou. E a polícia, a gente não discute isso como algo sério, porque eles fazem isso em nosso nome mesmo. Eles são o braço do Estado, e a gente normaliza e a gente normaliza eles como se fosse outra facção, sabe? “Ah, eles estão revidando pedras!”. Mas é o Estado, eles não têm que revidar nada. Eles precisam assegurar aquilo ali, eles têm que fazer uma outra coisa. E é um nível de violência que a gente naturalizou no país. Eu acho que isso se conecta com junho profundamente, assim. Profundamente. Como que a polícia começou a se ver como uma força autônoma em manifestações, como já tem balé já organizado assim, ela já faz isso sem ordens do governo.
Pedro Dória (Meio): Você está falando muito de junho, imagino que a maior parte dos espectadores tenha imediatamente identificado, você está se referindo a junho de 2013.
Bruno Torturra: Junho de 2013. Já faz tanto tempo, não?
Pedro Dória (Meio): É. (acha graça) Você tinha uma ligação na época com o pessoal do Mídia Ninja, que era o nascimento de uma imprensa alternativa que, de fato, era alternativa no sentido de que estava muito menos conectada com o governo do que outras coisas que eram chamadas de imprensa alternativa. E durante um certo tempo teve um impacto grande na cobertura daqueles eventos. Era também o início dessa ideia de screamin, quer dizer, tinha uma tecnologia aflorando ali. Junho de 2013 é fundamental para a gente entender o Brasil hoje. É como se naquele momento algum tipo de rompimento tivesse ocorrido e o Brasil tivesse entrado em um túnel ali, e a gente ainda está tentando lidar, compreender o que houve em 2013 e lidar com as consequências de 2013. Quem é que você acha que estava na rua pedindo o que? [00:17:46]
As manifestações de 2013 e a entrada da redes sociais nas manifestações
Bruno Torturra: (acha graça) Ah, Nossa! Eu volto a um twit que eu fiz (acha graça), naquela segunda-feira que todo mundo foi para a rua depois da grande violência de quinta-feira, eu já me confundo quais os dias foram. Mas teve aquela quinta-feira fatídida aqui em São Paulo, com muita violência policial, muita agressão, todo mundo sabia que aquele dia ia ser muito intenso, mas não imaginaria como. Algo aconteceu entre quinta e segunda-feira, que a gente pode depois discutir. E na segunda-feira, a gente sabia que ia ser grande, mas não sabia que ia ser aquela grande novidade, que algo muito grande emergiu. E eu lembro quando eu estava no Largo da Batata, antes de sair, antes de entender o tamanho do que ia acontecer, e eu vi que tinha punk, anarquista, tinha o PT, tinha o PSTU, tinha uma classe média desorientada, tinha maconheiro, tinha autonomista, tinha gente de Direita claramente, tinha tucano (PSDB), tinha gente pedindo intervenção militar, tinha gente desavisada, tinha gente passeando. E aí eu lembro que eu twitei assim, eu falei: “Nossa! Muita gente aqui se odeia e ainda não sabe, ainda não descobriu”. Porque eu falei: “Isso está absolutamente imcompatível do ponto de vista ideológico”. E se você andasse na rua, que acho que é o único jeito que o Brasil pôde por 1 milhão de pessoas na rua, é sem uma coesão, porque a gente não tem 1 milhão de pessoas que vão pela mesma causa no Brasil, a gente não consegue fazer isso. Então a gente meteu muitos e muitos grupos e havia uma… e para mim hoje é muito claro o que aconteceu ali, aliás, não é muito claro. Mas eu tenho uma versão um pouco mais clara do que na época. Se você olasse aquela multidão caminhando, e não tinha liderança, isso é outra coisa que se fala muito, não tinha causa clara, não tinha demanda e tal, cada pessoa tinha uma cartolina com uma frase específica. Gente falava de Educação, tinha gente com piada, tinha gente falando de revolução, tinha gente falando sobre a Primavera Árabe, sobre Educação, sobre corrupção, sobre patriotismo. Era uma time line, não era manifestação. Era um tipo de um protagonismo individual de pessoas que sentiram uma urgência em rede social de se expressar, houve uma politização muito súbita da rede social na forma como a gente começou uma outra conversa pública. Então, eu acho que ali foi mais um fenômeno de comunicação, uma mudança no paradigma midiático e de expressão que encontrou na rua um ponto de fusão assim, foi uma time line indo para a rua de fato. E eu acho que aqui, essa foi a virada central que foi o posicionamento, o perfil, a expressão individual, a disputa de narrativas, reconhecimento, outros grupos de identificação like que começou a entrar na política real, que começou a entrar na nossa vida cívica e não na nossa vida digital, mais. E aí, depois, naturalmente, esses grupos foram entendendo que eles não eram compatíveis, eles foram entendendo que eles se odiavam, que eles tinham muitas divergências, que eles eram diferentes. E houve uma entrada tão grande de gente nesse grupo, uma sensação de protagonismo histórico que o Brasil não sentia há tanto tempo, do ponto de vista individual, e não das organizações, que esse processo foi um processo de criação de novas identidades ao longo dos próximos anos e meses. Que junho não inaugurou exatamente, mas ele representou isso como o grande festival disso, como a grande fundação disso no Brasil mesmo. E acho que tem muita interpretação possível de ser feita. E acho que ela nunca vai ser encerrada exatamente por conta disso, ele foi um fenômeno hiper. Ele se deu na cabeça de pessoas, de maneira muito diferente, ele provocou muitos traumas em muitas pessoas de forma diferente. Ele tem uma dimensão midiática, tem uma dimensão política, tem uma dimensão urbana, vai depender muito do dia de junho que você está falando. Vai depender do que aconteceu em São Paulo, do que aconteceu no Rio, do que foi muito diferente o que contecu em São Paulo, profundamente diferente, o que aconteceu no Sul. O que aconteceu nos jovens que hoje têm 20 anos, mas naquela época tinham 12 anos, ou 13 anos e que viram aquilo acontecer de fora e foi a inauguração de um processo político. Mas ao mesmo tempo eu também acho que a gente supervaloriza junho como o único ponto de inflexão real que houve, mas eu acho que teve algumas coisas que aconteceram depois de junho, que também são muito importantes de serem entendidas, como a Copa do Mundo (2014), que acho que a gente pensa muito no que aconteceu lá. E acho que foi muito central para o bolsonarismo começar a se organizar de um jeito, até com seus ícones estéticos. Mas eu não sei, Pedro, essas coisas mudam na minha cabeça o tempo inteiro, assim. Se me perguntasse isso há um ano atrás, a minha resposta ia ser outra, assim. Eu sei que da minha cabeça assim, eu… (suspiro) acho que tem algo em junho, para fazer uma crítica, que acho que pegou todo mundo, ela tem uma força muito narcisista no ativismo de todos os lados. E que junho catalisou de maneira muito forte através dessa mistura da participação com a autoexpressão em rede social, com a coisa de se posicionar em tempo real e você prescindir a organização e o anonimato em nome de um autorreconhecimento do seu protagonismo no seu processo. E eu acho que isso, mais do que a destruição dos partidos, das instituições, eu acho que é uma destruição de um processo necessário, que é uma política das relações, que é a gente parar de se encontrar, parar de se organizar, parar de pensar estrategicamente e sempre ter uma política muito performática, muito em foco na própria autoimagem, no posicionamento, nos grupos de identificação numa outra Economia muito diferente do que a gente conhecia antes em termos de participação e ativismo, eu acho.
Pedro Dória (Meio): Você fez um comentário aí que me interessa, eu queria te pedir para desenvolver um pouco mais. Você tem toda razão. A gente fala muito pouco sobre a Copa aqui no Brasil. E a Copa traz 3 pontos que me parecem relevantes. E eu não sei se é a eles que você se referia. Um é principalmente no Rio de Janeiro, foi a ponta final do movimento, da participação do movimento dos black blocs. Quando houve de fato um grupo que chegou a preparar bombas para fazer algumas ações, mas já havia algum tipo de investigação policial, e talvez em alguns casos injustamente, outros casos não. Aquilo foi um capítulo que foi fechado ali, a participação social nesses movimentos sociais, os black blocs. Um segundo ponto que me parece importante, e que a gente fala pouco demais, é que cara, 7 a 1 foi um trauma.
Bruno Torturra: Completamente!
Pedro Dória (Meio): Aquele 7 a 1 quebra de vez uma… não é diferente do Maracanazo (Maracanaço, 1950), embora você não tenha tido o fenômeno meio romântico que se reclama, que se descreve do Maracanazo no final de 50 quando o Maracanã ficou em silêncio e tal, o Brasil estava numa onda, vinha da primeira década do século na onda de um “O Brasil grande”, e de repente aquele 7 a 1 é uma humilhação em território nacional que a Seleção Brasileira nunca tinha vivido, e me parece que a gente sentiu aquilo como uma metáfora de que o Brasil de fato era, como se tivesse sendo jogado na cara que a gente não era nada do que a gente imaginava.
Bruno Torturra: Sim.
Pedro Dória (Meio): E o terceiro ponto é um ponto que você comentou muito, que é não é à toa que em 2014 as pessoas estão vestindo a camisa da Seleção Brasileira, todo mundo tinha camisa da Seleção Brasileira. E aquilo de repente se transforma num símbolo político de Direita, que é uma coisa que a gente não via desde 1970, esse transformar a camisa da Seleção num símbolo de um grupo político. Como é que você lê a Copa? Como é que você vê a Copa (2014)? [00:27:47]
Copa do Mundo e o trauma do 7 a 1: O simbolismo e a apropriação da camisa da Seleção Brasileira pela Direita brasileira por um Grande Brasil
Bruno Torturra: Nossa! É tanta coisa! Sobre os 7 a 1, eu acho exatamente isso que você colocou, é um tipo de encerramento entre o Maracanazo e o 7 a 1 foi uma ideia de é país que foi encerrada lá, num trauma da nossa identidade, algo muito profundo. Que eu acho que o Maracanazo, na verdade, antes disso, a gente não… eu acho, a gente não tinha muito a ilusão de que a gente seria um país grande. O Brasil se entendia como um país periférico, ainda muito mal resolvido na sua identidade externa, a gente não sabia exatamente o que era. E a gente fez o Maracanã, o maior estádio do mundo, e a gente ofereceu isso. Eu acho que o trauma do Maracanazo, ele não foi nem um pouco parecido com o do 7 a 1, ele foi quase o contrário do 7 a 1. Ele foi uma derrota digna.
Pedro Dória (Meio): E nós chegamos à final.
Bruno Torturra: Chegamos à final. Houve uma derrota digna, uma derrota trágica, um gol no final, quase não entrou, gol. E foi o silêncio, foi muito… foi um luto! A gente processou isso de alguma forma. E depois disso, houve a ideia de que a gente poderia ser um país grande, como que o Maracanã representava, o Juscelino Kubitscheck (Presidente do Brasil de 1956 a 1961), e depois a gente ganhou a Copa do Mundo em 1958 inventando o grande futebol. E a Seleção Brasileira sempre tentou ser apropriada pela Direita, foi de alguma forma, mas ela era a unidade nacional, ela era aonde o Brasil se encontrava, era a camisa da Seleção, era o amarelo da Seleção, era o futebol, era o orgulho nacional, era uma série de outras coisas. Mas isso, a gente se dividia muito, mas isso estava resolvido. Não tinha muita polêmica aqui. A própria realização da Copa começou a dividir isso, começou a mudar isso o fato de que muita gente achava que não era o caso de ter uma Copa de Mundo, que isso representava um projeto errado, inclusive de futebol, o que os estádios começaram a representar, de serem muito elitizados, de a FIFA estar sendo vista como aula instituição absolutamente errada e tal.
Pedro Dória (Meio): Corrupta. [00:30:09]
A elite já mostrou sua raiva por Dilma na Abertura da Copa de 2014 e a decadência do lulismo
Bruno Torturra: Mas ainda assim, é. Muito corrupta e isso foi relacionado com o começo de novos escândalos que depois geraram a Lava Jato e tal. Mas, o 7 a 1 encerra esse projeto ufanista. E acho que para o lulismo, para o Lula (Presidente do Brasil 1998-2010), isso foi especialmente grave mesmo, porque seria o grande encerramento de um projeto: “Ó, nós somos um país grande de fato. A gente pode trazer a Copa de volta, a gente não precisaria ser o campeão, mas bastava realizar uma Copa digna, uma grande Copa. A gente ia mostrar para o mundo que a gente era capaz de fazer isso”. E os 7 a 1 vai no âmago, vai no âmago desse símbolo estético, dessa cor. E antes dos 7 a 1 isso já estava colocado na forma como a elite reagiu à Dilma (Presidente do Brasil 2011-2016) nos estádios (Dilma hostilizada na abertura da Copa de 2014), porque a gente pode falar que foi a elite sim, porque para estar na abertura da Copa do Mundo, você meio que tinha que ser da elite no Brasil, ou internacional, mas será rico. Você tinha um ingresso de um banco, de um patrocinador, você gastou, você investiu nisso com anos de antecedência. E a gente sabe, pelo que a gente viu, xingando a presidente da república de “filha da puta”, “vai tomar no cu”, na cara do mundo inteiro. Ali já tinha uma agressividade, já tinha uma certa ingratidão até, a gente não estava numa crise econômica. Havia um ressentimento claro já se expressando através das nossas elites econômicas. E com o 7 a 1 isso se encerra de uma maneira e a gente não viveu esse luto do 7 a 1, porque eu me lembro que por estar em rede social, já no 5º gol, já era meme! Já era um sarro autoimolante, já virou sarro antes de virar luto. A gente não ficou em silêncio, a gente já começou a se humilhar. Então, acho que é mais uma análise para um psicanalista do que para um jornalista que nem acompanha tanto futebol assim. Mas eu me lembro de no meio de 7 a 1 eu comecei a rir, cara. Eu comecei a rir! Eu estava esperando um 8º gol, um 9º gol. Eu queria 10 a 1 em alguma hora, eu entrei assim, eu comecei a me sentir num tipo um linchamento, sabe? Eu queria mais assim, tipo “Bate mais na gente, mete 10!”. E eu não sei muito por que (riso), mas acho que a gente está fazendo isso… acho que o Brasil entrou num processo autofágico assim, muito forte. E que não vou culpar o 7 a 1, mas o 7 a 1 é um grande ritual em relação a isso, sim. Foi uma missa que inaugura esse processo autofágico. Sobre os black bocs, Pedro, eu acho assim, houve muito injustiça que foi cometida com aquela turma. Inclusive porque grande parte da violência e das bombas e dos atentados que foram planejados, foram planejados, a gente sabe disso porque a gente vê isso na rua. Planejado às vezes por policial infiltrado, por gente muito má intencionada, por mentira mesmo. E francamente, eu não confio na polícia para investigar os anarquistas, eu não confio porque não confio na polícia brasileira e eu acho que há muitos anos antes, eles já identificavam, porque eu acho que os anarquistas fazem isso mesmo, mas a polícia é o inimigo. Então, eles veem que eles não estão numa luta contra vândalos ou pessoas que estão depredando o patrimônio público. São inimigos existenciais da polícia. Então, eles têm um prazer específico em perseguir eles. Eu acho. E aí é uma divergência que a gente tem, eu e você mesmo, na forma como a imprensa fez a cobertura dos black blocs, porque eu já disse isso em outras oportunidades assim, eu nunca botei uma máscara para ir em manifestação, eu nunca atirei um clipe em cima de ninguém, nunca destruí nem banco, nem nada, nem patrimônio de ninguém, muito menos o corpo de alguém. Nunca botei fogo em nada, porque eu não acho produtivo e porque eu tenho medo, não gosto de violência, nunca briguei na minha vida. Mas, a Sociedade brasileira e a Imprensa brasileira, a maioria das pessoas no Brasil mesmo, a gente se escandaliza muito mais com jovens que tacam fogo em lixo do que com uma Polícia Militar que quebra a cara das pessoas, joga gás lacrimogênio na cara das pessoas. E a polícia começou a fazer isso muito antes dos black blocs aparecerem no meio da rua. Eu fui no MPL (Movimento Passe Livre), eu ia nas manifestações e eu também sou contra o aumento de ônibus. E eu vi! Eu vi as balas sendo atiradas na frente de estudante, jovem, adolescente, gás lacrimogênio, pancada, porrada, prisão injusta, vi na Marcha da Maconha, vi em marcha feminista, vi em marcha na periferia. E os black bocs, eles aparecem como uma necessidade social de falar assim: “A gente vai para linha de frente, a gente enfrenta esses caras. Pode deixar”. Isso é uma ideologia, assim, o jeito de acabar com os antifas é acabar com o fascismo. É assim, é fazer com que a polícia não faça com que os black bocs sejam necessários como forma de expressão. Porque eu também acho improdutivo, do ponto de vista psíquico e tudo mais. Mas eles foram tratados como algo que eles não são, eles não são terroristas, eles não estão planejando morte de ninguém. Eu digo isso porque eu estava com eles lá, fazendo a cobertura. E eu vi! E inúmeras vezes, eles indo e retirando as pessoas e os funcionários dos bancos antes de tacar pedra. Eu vi uma discussão de black boc e eu filmei isso ao vivo, estava fazendo uma transmissão. Um ia tacar uma pedra numa vitrine da loja da Tim e aí os outros impediram ele e teve um debate lá, se era ou não para arrebentar uma vidraça da Tim. E aí eles decidiram que não, porque se quebrassem a Tim, iam ter que querar a da Claro, a outra. E eles disseram: “Não, vamos só em banco”. É questionável, mas eles tinham uma organização que a polícia não tinha, cara. A polícia manda bala em quem for. O coronel não fala assim: “Será que a gente não joga uma bomba naquele cara. Não, vamos só pegar aquele ali”. Não, eles saem tacando bomba em senhora, em ônibus, em carro. Então há uma selvageria que está muito mais representada no Estado do que nesses manifestantes. E assim, sem dúvida eles foram ali sim, encerrou uma coisa, mas se a gente olhar para as pessoas, aconteceu com a Sininho (Elisa Quadros), com a turma do Rio de Janeiro e tal, eles foram muito traumatizados, eles não cometeram crimes que merecessem o tipo de punição de violência que eles sofreram, e a violência não é só policial, é uma violência midiática, é uma violência de exposição de ser capa da Veja, de ver o nome. É muito difícil, Pedro. Assim, a pouca disposição que eu tive, que não foi nem um pouco perto, nem nada equivalente com o que eles receberam, é traumático, cara. Você se ver colocado como um inimigo da imprensa, como alguém que está criando arruaça. Mas eu acho que ali também abriu uma porta para a polícia se entender com essa força ideológica, a política radicalizou essa ideia de que eles são da Direita mesmo. Porque eu acho que a política antes, eles sempre representaram de algum jeito a Direita na forma como eles reprimem a sociedade, como eles protegem mais o patrimônio do que a própria vida, como eles reprimem mais a Esquerda, historicamente. Mas ali eles compreenderam que eles faziam parte de um processo político. E a polícia se politizou muito. E enfim, não sei se eu fui claro, mas… [00:39:12]
Pedro Dória (Meio): Não, eu acho que foi sim. E você tem razão. A gente tem talvez menos desavenças do que você considera, mas a gente tem algumas discordâncias pontuais a esse respeito, sim. Eu te falo, eu nem quero entrar muito nessa discussão, eu te digo por que. Não porque eu ache que essa seja uma discussão que seja inútil hoje em dia, muito pelo contrário, eu acho que é uma discussão fundamental. A gente ainda tem que parar para entender o que aconteceu em 2013, porque em 2013 a gente estava vivendo a coisa. A gente conforme vai ganhando distância, a gente vai precisar cada vez mais sentar e ter essas conversas a respeito de 2013, mesmo que não seja para concordar, mas para compreender com um pouco mais de calma os argumentos de todos os lados. Independentemente disso, eu acho que tem dois pontos que não ficam muito claros para a Esquerda. O meu trabalho no Globo naquela época, eu era o editor executivo responsável pela pauta. E assim, eu decidia junto com os editores de cada editoria, o que é que a gente ia cobrir naquele dia e que repórteres iam ser mandados. Em geral, a decisão de que repórter vai ser mandado é uma decisão do editor, o editor executivo não entra nisso. Quando começaram os black bocs, o nível de agressividade contra a imprensa começou a ficar tão violento. Isso não foi uma coisa só minha, não, no Globo. Isso todos os veículos de imprensa.
Bruno Torturra: Sim. Eu testemunhei muito.
Pedro Dória (Meio): A gente começou a ter medo de que um jornalista fosse ficar gravemente ferido, ou que até viesse a morrer! Como de fato aconteceu.
Bruno Torturra: Morreu.
Pedro Dória (Meio): E eu não estou dizendo que a história do Santiago, que morreu no Rio de Janeiro, o problema de quem é black bocs, quem não é black bocs, é sempre a coisa, é claro que tinha P-2 da polícia infiltrado. É claro que tinha gente de políticos que faziam se passar por black bocs, também. Aquilo é uma grande confusão. Então você dizer quem é do movimento, quem não é do movimento, ainda mais quando a gente está lidando com anarquista, vira aquela coisa absolutamente impossível, porque eles não se reconhecem muito como movimento, porque “não temos líderes, porque não temos”, mas no entanto eles fazem parte de uma teatralização de uma estetização da violência contra o poder do Estado, que eu compreendo, do ponto de vista ideológico, mas que quando vira uma coisa prática, aquilo é violência na rua. Isso não é um inocentar a polícia de forma alguma, Bruno. Porque…
Bruno Torturra: Não, acho que sim.
Pedro Dória (Meio): …jornalista apanhar da polícia sempre aconteceu. A novidade em 2013 foi jornalista apanhar de manifestante também. A gente nunca tinha lidado com isso. E o crescimento da violência, cara! Eu nunca tive tanto medo trabalhando na minha vida de perder um jornalista. Nunca! Nunca! [00:42:40]
Bruno Torturra: Não, sim. Eu sei.
Pedro Dória (Meio): O meu. Emocionalmente naqueles três meses das manifestações, o que eu tive em essência foi medo da responsabilidade que eu tinha, que era uma coisa que eu nunca imaginei que fosse viver na minha vida. Mas tudo bem, eu também nunca imaginei na minha vida que eu fosse como jornalista ter que defender a democracia, e é isso que está acontecendo agora. Mas enfim, mas eu não falo… de qualquer jeito, temos uma discordância razoavelmente documentada a respeito disso. Eu sugiro que a gente vá adiante…
Bruno Torturra: Claro!
Pedro Dória (Meio): …para tentar compreender o momento de agora.
Bruno Torturra: Claro. Sem problema.
Pedro Dória (Meio): Você ensaiou um pouco a coisa do nascimento dessa Direita. A gente não tinha uma Direita que se dizia Direita desde até já, as pessoas saíram da ditadura militar. A ditadura militar foi um desastre! Não foi só porque torturou e matou, a ditadura militar foi um desastre porque quebrou o país, destruiu a moeda brasileira, foi corrupta que não acaba mais. Aí vem aquele momento de renascimento das Diretas Já, nós éramos crianças partindo para a adolescência. Naquele momento, as pessoas de Direita têm vergonha de ser de Direita, e aquele troço dura quase 2 décadas, a vergonha de ser de Direita. E de repente, quando começa a reaparecer no Brasil a Direita, a primeira Direita que aparece é uma Direita que eu chamaria de lacerdista (Carlos Lacerda), no sentido de essa coisa de “a corrupção é o grande problema do país”, o mar de lama… e uma certa coisa, que passa por uma certa ingenuidade. Se a gente resolver a corrupção, a gente resolve o problema do país. Até porque eu tenho a impressão que na ausência de políticos darem algum tipo de resposta a 2013, os procuradores de Moro (Sérgio Moro) apresentaram algum tipo de saída: “Olha, esse é o problema”. Eles tinham uma teoria.
Bruno Torturra: Exato.
Pedro Dória (Meio): Entendeu? “Olha, o problema é esse aqui e nós vamos resolver dessa forma”. Então, essa é a primeira Direita que aparece, me aparece uma Direita lacerdista, só que junto com ela, no início meio minoritária, e depois crescentemente vem essa Direita antidemocrática e autoritária que desemboca num Bolsonaro. Eu vejo essas duas direitas como coisas diferentes, tá? Que sim, estão juntas em vários momentos, mas que não são a mesma coisa. Como é que você identifica esse nascimento dessa Direita? Como é que você enxerga essa Direita? Como é que… o que é que você vê, cara? [00:45:42]
Como nasceu a Nova Direita brasileira bolsonarista: essencialmente foi um oportunismo político é a micaretagem dos 20 centavos na FIESP
Bruno Torturra: Cacete! Que pergunta difícil. Eu acho que também é uma fauna, acho que não dá para simplificar, mas elas se fundem num oportunismo muito forte. Eu tive essa sensação muito clara na reunião do Bolsonaro, reunião ministerial. Você vê que está todo mundo meio tentando puxar o saco dele, tal. Mas quando você vê, ele também se odeiam, mas estão juntos num oportunismo.
→ Leia a transcrição da reunião ministerial de 22 de abril de 2020 revisada por nós
Bruno Torturra: O que o Ricardo Salles (ministro do Meio Ambiente) quer é uma coisa, o que a Damaris (ministra dos Direitos Humanos) quer é outro, o que o Paulo Guedes é outra coisa, o que o Sérgio Moro estava a fim era outra coisa. Mas eles viram no Bolsonaro esse cavalo de troia que eles conseguiriam entrar pelo muro do Estado através de um atalho, que é o que eu acho que o Bolsonaro foi para muita gente de Direita, foi mais um atalho que eles precisavam do que o presidente da república ou do que um líder. Mas esse cavalo troia, ele não tinha o alçapão para sair de dentro dele, ele também tinha um projeto. Ele não era oco, ele tem poder o Bolsonaro. Mas eu acho que essa Direita, sim, cara, (suspiro) Talvez porque eu estou um pouco obcecado com o que aconteceu ontem. Mas é algo que para mim, por estar na rua e ter visto, eu me lembro do dia que eu vi o nascimento dessa Direita mesmo. Na minha cabeça, tá? Muita gente podia ter visto antes ou depois, eu tenho isso registrado com foto e vídeo. Foi no dia que a tarifa de ônibus, de fato, ela foi revogada, depois da segunda-feira foi revogada na quarta ou na terça e a gente voltou na rua na quinta, talvez quarta ou quinta-feira aqui em São Paulo (19/06/2013 – quarta-feira), e foi um dia muito importante. Foi o dia que o MPL se retirou da rua porque foi meio expulso pelos fascistas mesmo, por gente que tinha uma ânima fascista, não necessariamente sabia ser, mas a psicologia estava totalmente colocada lá. Os movimentos sociais de Esquerda…
Pedro Dória (Meio): Bruno, só para as pessoas saberem do que a gente está falando. Quando você se refere ao MPL, você está falando do Movimento Passe Llivre? [00:47:50]
Bruno Torturra: Movimento Passe Livre, que foi a origem, que estava falando que a gente quer o fim do aumento de ônibus, é R$ 3,20, 20 centavos. Quando 20 centavos caíram de fato, o MPL volta à rua, mas muita gente foi e naquele dia foi central, foi o dia que os movimentos sociais de Esquerda, que estavam fora dessas manifestações, resolveram assumir que eles tinham que retomar o protagonismo de rua, eles já estavam muito preocupados que tinha uma semente meio estranha ali, de Direita patriótica esquisita ali, e eles foram expulsos violentamente da rua. E ali teve um momento, quando todos foram expulsos, eu me lembro de ter essa sensação muito claro. Foi na frente da FIESP. E eu lembro que ali inaugurou um negócio muito importante, Pedro, que é… se você reparar como a Direita se manifesta, eles não fazem marcha, eles não fazem passeatas, eles ficam parados. E isso muda completamente a natureza de uma manifestação, porque você não anda para o mesmo sentido, você não anda junto, você não vê as costas do seu parceiro e vai até um lugar. Vira meio que um festival, vira meio que uma micareta (carnaval), e as pessoas andam para lá e para cá, tiram fotos, é um outro tipo de relação social que se estabelece. E eu lembro de ver, como não tinha uma liderança capaz de falar: “Vamos para a Brigadeiro“, todos ficaram na avenida de fato, ficaram na avenida. E ali a FIESP acendeu de verde e amarelo, não tinha acontecido antes. Eles ligaram uma bandeira nacional e a turma começou a… teve um sentimento muito ufanista e começou a se cantar o Hino Nacional ali. Então, ali eu senti que havia uma mudança de fato, a sensação de um protagonismo histórico ufanista que uma classe média achou ali, na hora que eles expulsaram os comunistas, o MST, os anarquistas e tal e virou uma festa entre aspas, cívica. Depois eu acho que a centralidade para entender aonde o bolsonarismo nasce…
Pedro Dória (Meio): Só um minuto, Bruno. Desculpa. Isso é em 2014? [00:50:15]
Muita gente na manifestação que era de Direita defendia pautas da Esquerda mas rejeitavam a liderança da Esquerda, queriam a liderança da PM
Bruno Torturra: Não, isso é junho de 2013, quando revogaram o aumento da passagem de ônibus. Foi naquela semana daquela segunda-feira, foi na segunda teve isso, acho que na terça ou na quarta-feira revogaram o aumento, o Haddad (prefeito de São Paulo) junto com o Alckmin (governador de São Paulo) no Palácio dos Bandeirantes (sede do governo paulista).e na quinta, se eu não me engano foi na quinta-feira, foi uma comemoração por essa vitória. E ali que a FIESP acende de verde e amarelo e as pessoas cantam o Hino Nacional. E eu me lembro de entrevistar muita gente naquela avenida. E aí para mim tem uma chave mesmo, que é quando você entrevistava as pessoas, se você fosse perguntar, eles tinham pautas essencialmente de Esquerda, comunista, quase! “A gente tem que estatizar com todos os bancos. Tem que acabar com esses bancos todos. A gente quer hospital público, a gente quer serviços de qualidade. A gente quer um Estado grande”… eles estavam a fim como se fosse na pauta específica. Mas eles rejeitavam todas as organizações de Esquerda, eles queriam uma liderança que viesse do povo. “Tem que ser a gente governando”, ninguém tinha a menor ideia de que estava falando, mas tinha uma sensação de protagonismo histórico, era tipo maio de 68 (movimento francês progressista contra Charles de Gaulle) (slogans estudantis de 1968: “sejam realistas”, “exijam o impossível”, “parem o mundo que eu quero descer”, “é proibido proibir”), de uma classe média muito despolitizada, assim. (…) E aí, no final dessa manifestação, eu fotografei dois pontos na Paulista, que tinha suástica no chão, que alguém pôs uma suástica no chão. E a gente identificava grupo fascista real ali, já. E longe de mim achar que isso foi financiado por alguém, acho que isso é uma teoria completamente estúpida, mas havia ali uma psicologia fascista, começando a achar um modo de expressão, que não é Direita exatamente, mas é um jeito de entender a política; é um jeito de entender qual que é a função do Estado. E aí eu volto na minha obsessão que eu estou mesmo, que assim, o que organizou isso é onde as pessoas viram a representação do Estado com que elas se identificam não é no Congresso Nacional, não são nos sindicatos, não é na presidência da república, não é no Senado, não é no Judiciário, era na polícia. A polícia era o braço do Estado com que as pessoas começaram a fazer self. Isso é muito significativo! E a polícia começou a se reconhecer como isso também. “Nossa! Eu tenho mais apoio popular do que eu imaginava”. E houve um processo por conta da natureza da polarização, da forma como a Esquerda leu isso e se expressou em relação a isso, como os oportunistas do outro lado utilizaram isso, em que isso foi se radicalizando, em que a polícia começou a ser vista como defensora do povo, um representante autentico, pelos seus defeitos e não pelas suas qualidades. Era na hora que ela batia, que ela exterminava, que ela… então, acho que tem uma identidade política brasileira, que nunca teve muita fé na democracia de verdade. Nossa democracia nunca… ela tem uma data de validade muito curta, ela é um produto muito perecível historicamente. (suspiro) Aff! Tem tanta coisa, Pedro, já meio à memória outro episódio de 2014, que foi outra manifestação que eu fui, e essa eu vou te dizer, foi a minha última participação na Mídia Ninja que eu já tinha saído da Mídia Ninja, eu já estava no Fluxo, eu saí em 2013. Mas em 2014 eu fiz uma transmissão especial para a Mídia Ninja, que foi na marcha comemorando os 50 anos do golpe militar de 64. E era Marcha com Deus pela Família (contra João Goulart em 1963) reeditada. Foi muito pouca gente, mas ali tinha… o centro da manifestação era uma glorificação não do Exército, mas da Polícia Militar. Eles estavam no carro de som, eles estavam infiltrados nas pessoas, estavam fazendo selfies com as pessoas. Muito pouca gente, na Praça da República, de todos os lugares a Praça da República. E eu lembro que foi a última manifestação que eu fiz, a última transmissão que eu fiz da Mídia Ninja, porque no final eu estava muito deprimido, porque eu falei assim: “Cara, eu não quero exibir isso aqui, eu não tô a fim de dar palco para esses caras. Eu tô achando que eu tô funcionando muito mais como um microfone do que como um denunciador disso daqui”. E isso cresceu muito, cara. Agora, eu não acho que o lavajatismo é tão diferente assim, em um sentido. Apesar de ele não ser violento na sua essência, violência física, ele é muito violento nas instituições. Ele foi violento com o devido processo. E espetacularizou o judiciário e a investigação e a corrupção da mesma forma como a política, os black bocs espetacularizaram a violência na rua. E essa compreensão cinematográfica de uma novela, de um enredo, ela pode não ter sido a mesma coisa na origem, mas ela faz parte da mesma perda de limites que a nossa república passou nos últimos anos assim, de que existe algo mais importante do que as instituições, do que o respeito pela Carta assim, que é “vamos passar o nosso bonde aqui em nome de algo melhor, em nome de algo que justifica isso”. E aí eu acho que claro que uma coisa encaixou com a outra perfeitamente. Pessoalmente, eu achava que o Bolsonaro ia ganhar a presidência já desde 2016, porque eu não imaginava como uma Direita moderada poderia se beneficiar disso. E eu queria estar errado, assim. Queria estar bem errado.
Pedro Dória (Meio): Tem uma coisa que me chama a atenção aí. É evidente que há fascistas dentro do bolsonarismo, embora eu tenha uma dificuldade de considerar o fascismo como uma forma predominante dentro do bolsonarismo.
Bruno Torturra: Eu sei.
Pedro Dória (Meio): Agora, o que você descreve aí, é um movimento que quer um Estado total.
Bruno Torturra: Uhum.
Pedro Dória (Meio): De Direita, que glorifica violência policial, é por definição fascista.
Bruno Torturra: É por definição fascista.
Pedro Dória (Meio): Isso é, porque a diferença que eu vejo do lavajatismo para isso é a seguinte: o lavajatismo é uma coisa que existe, democracia só começa de fato no Brasil na República de 46, porque a Primeira República (1891-1930), embora houvesse eleição, era uma república oligárquica, menos de 10% da população votava.
Bruno Torturra: É.
Pedro Dória (Meio): Você tem tipo, não é que o cenário das democracias internacionalmente fosse muito diferente, mas não é o que a gente chama de democracia. Então democracia começa mesmo depois do Estado Novo (1930-1945). E essa força dessa Direita anticorrupção, extremamente moralista e tal, sempre existiu, sabe? É o lacerdismo, entendeu? É um pedaço do udenismo, não é todo o udenismo, mas é um pedaço do udenismo. E sempre existiu porque é mais ou menos dessa época também que é o final do Estado Novo, que começa aquela coisa do “rouba mas faz” (Ademar de Barros), entendeu? A corrupção começa a ter um papel maior na história política brasileira, a corrupção não era uma questão. As pessoas não enriqueciam, políticos não enriqueciam na Primeira República. Eles começam a enriquecer a partir dos anos 40, é isso que… Então, é diferente de uma índole fascista que você vê em circunstâncias como essa, que você descreveu, do sujeito que é de Direita, no entanto quer uma coisa que é um Estado total, e vê esse Estado personificado numa milícia ou numa polícia.
Bruno Torturra: Uhum.
Pedro Dória (Meio): Entendeu? E isso é fascismo, assim como o ritual de sábado à noite com tochas (31/05/2020), é um ritual fascista, em qualquer lugar aquilo vai ser chamado de um ritual fascista. A única vez que isso aconteceu no Brasil foi nos anos 30 com o Integralismo.
Bruno Torturra: É.
Pedro Dória (Meio): Isso havia desaparecido. A Ditadura Militar não é uma ditadura fascista, é uma ditadura de Direita, é uma ditadura autoritária, é uma ditadura assassina, é uma ditadura corrupta, é muitas coisas. Mas fascista ela não é. Os movimentos militares dos anos 1960-70 e início dos anos 80 na América Latina não são fascistas, são uma continuação do caudilhismo.
Bruno Torturra: Eu concordo.
Pedro Dória (Meio): Mas eu tenho uma certa dificuldade. Eu concordo com você que existem várias direitas ali dentro do governo Bolsonaro, eu tenho dificuldade de ver qual é o tamanho do movimento fascista dentro, ou não do movimento, porque não há um movimento organizado, mas do ideário de uma ideologia fascista dentro…
Bruno Torturra: Dentro do governo?
Pedro Dória (Meio): …dentro do governo. [01:00:29]
A glorificação da morte de Bolsonaro e alguns ideólogos contra o crime e a PM como braço armado de Bolsonaro
Bruno Torturra: Eu acho que… aí que tá. É uma discussão complicada e eu também não sou um especialista nisso, Pedro, eu não sou um cara que estudou muito política, eu não estudei muito história, e tal. Eu dou muito palpite. Mas e eu sei que como você é muito mais ligado em história, eu entendo que você procura mais os elementos históricos que vão definir o fascismo, para chamá-lo de fascista. Mas eu acho que talvez a leitura que mais me interessa no fascismo, ela não é como ele se expressa no Estado, mas é a leitura psicanalítica, a leitura filosófica do fascismo, de que forma que ele representa uma pulsão interna no ser humano.
Pedro Dória (Meio): Freud e Adorno? [01:01:15]
Bruno Torturra: É. É um pouco mais isso assim, que tipo eu também não li. Mas eu sei mais ou menos as leituras que eu fiz sobre psicologia de massa, o próprio Reich, Adorno, e tal. E como eu vi na rua as pessoas expressando essa pulsão fascista, que às vezes está dentro de gente de centro, de gente de Esquerda também, mas que quando ela se expressa de maneira bem mais acabada é sempre na Direita mesmo, porque ela tem a propriedade como a grande prioridade a ser preservada e não a vida. E acho que o que define mais o fascismo, do que o totalitarismo e essa ideia de um Estado único, que sem dúvida se expressa sempre assim, é uma outra ideia de morte. Eu acho que é a relativização da morte e uma glorificação da morte. Por isso que eu acho que é uma coisa psicanalítica e meio libidinosa, tem alguma sexualidade maluca aí no meio que eu não sei interpretar, e que eu acho que no Brasil ele tem um fascismo próprio, que talvez não tenha sido muito bem interpretado porque a gente só tem o europeu para olhar como referência. Mas a gente é um país que sem pandemia mata 60 mil pessoas por ano em homicídios, que no fundo é uma falha da nossa sociedade, não é motivos naturais, não é doença, não é velhice. É uma pandemia de uma outra natureza, a gente não lida com isso de uma maneira responsável. E historicamente a gente é um país que naturalizou a morte de uma parte gigantesca do nosso povo: os negros, os índios, as pessoas pobres. E sempre teve a propriedade como algo sagrado, e isso vai criando uma cultura estranha na nossa cabeça, uma naturalização e depois um certo fascínio. E eu acho que essa ideia… e no Brasil especificamente, e acho que é uma característica muito neofascista, que eu vejo nos Estados Unidos, que é bem out right mesmo, que não dá para comparar com o fascismo clássico, mas que tem uma certa irreverência na forma como lida com a morte. Ela nunca vem como um luto, ela não tem uma solenidade. E ela logo vira um meme. Então, eu acho que esse é o fascismo central brasileiro, que está na forma como o noticiário cobre violência, como o Datena fala para as pessoas, como o Sikeira fala com as pessoas, como a polícia trata de “o bandido bom é bandido morto”, uma pessoa que tem um antecedente criminal por esse morto. Isso vai criando um certo fascínio com a morte que para mim o Bolsonaro é a expressão bem acabada disso. Entendeu? Ele é um cara que fala da morte com uma banalidade assim, como se fosse qualquer coisa. E agora, na pandemia, isso está escancarado. “E daí?”, para 20 mil mortos ,5 mil mortos, 30 mil mortos, 100 mil mortos, 1 milhão de mortos? “E daí?“ (parte da frase de Bolsonaro: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” Sobre as milhares de mortes por covid-19 no Brasil em abril de 2020). O ponto aqui é outro, a gente não se importa muito com isso. Então eu também não sei de que forma que isso é uma ideologia organizada dentro do Estado. Porque fascismo também é uma palavra que infelizmente está muito banalizada, assim como o comunismo e tal. Mas, não me interessa como eles se chamam. O que me interessa é qual é o afeto que organiza esses caras? E como isso encontra reflexo na sociedade brasileira? Sim! E aí as pessoas enfim, elas expressam isso. E por isso que eu acho que a Polícia Militar é central para a gente entender isso, porque foi ali que a ditadura não acabou, Pedro. Isso a gente não reformou. E isso o FHC (Presidente do Brasil – 1995-2002) não fez, o Lula (Presidente – 2003-2010) não fez, a Dilma (Presidente 2011-2016) não fez, a gente nem tentou fazer. Algumas pessoas tentaram de maneira heroica, a gente sabe nome e sobrenome dessas pessoas, (acha graça) porque são poucas (acha graça) no fundo. Entendeu? E ag não soube lidar com isso. E aí não é ditadura, é essa expressão do guarda mesmo, que está no gás lacrimogênio, quanta nesse tesão que o receptação sente quando vê a bomba voar na cara de um anarquista, de um torcedor do Corinthians, de um cara vestido de preto e tal. É isso que me preocupa. É isso que me preocupa no cavalo que o Bolsonaro montou ontem. Agora, algo que eu não sei mesmo, cara, é como que isso vai se dar, porque todo mundo está falando e sei que você também teme e fala, e eu temo essa está ruptura, como é que isso vai acontecer? Como é que da ideologia fascista se torna um Estado fascista, como é que eles vão organizar essa ditadura brasileira do “é Bolsonaro”. E não me parece que ninguém sabe que passo é esse. Eu também não imagino a milícia do Bolsonaro entrando no STF, uma Polícia Militar de baixa patente entrando no Congresso Nacional ou o Exército. E depois? Sabe? E ao mesmo tempo ninguém parece saber como remover o Bolsonaro, porque não parece que as instituições brasileiras têm respaldo armado para poder impor o impeachment, ou para poder impor em cima de uma eventual recusa do Bolsonaro de aceitar uma ordem. Então, acho que a gente está vivendo um certo impasse, que mais que ruptura, é algo que o bolsonarismo para mim representa assim, que é uma erosão acelerada, em vez de um golpe, é um processo de apodrecimento da nossa política.
Pedro Dória (Meio): É, eu não chamaria de fascismo, mas eu certamente reconheço exatamente o que você está descrevendo porque estava no Filinto Muller no Estado Novo, estava no Ustra na ditadura militar e isso continua…
Bruno Torturra: Exato.
Pedro Dória (Meio): …nos porões da polícia, que segue torturando, que segue matando em geral rapazes negros pobres, na periferia, e é evidente que existe um lado por falta de outro adjetivo, vou chamar de medieval na sociedade brasileira que de certa forma vibra com isso. [01:07:40]
Supremacia branca, o Capitalismo e o fascínio do brasileiro pela autoridade da PM
Bruno Torturra: Vibra! E aí, eu acho que mais do que fascismo, que também acho um termo que eu uso com alguma hesitação, mas eu não me acanho de usar ele às vezes, e nazismo também agora, que agora a gente tem que falar de nazismo, mas que é… e isso conecta muito com o que está acontecendo nos Estados Unidos hoje, que eu acho que é… a gente tem que falar sobre algum jeito de falar sobre supremacia branca, não é? Que não é só a expressão das tochas bem acabadas e… mas que é essa ideia, essa sensação de que existe de fato uma superioridade de algum jeito na raça branca, ou no projeto branco, ou na forma como o capitalismo representa isso de maneira tão clara na forma como ele se expressa. Então essas coisas estão todas em movimento e naturalmente, mas tragicamente, a gente só tem a terminologia do século 20 para se referir a isso, não? Mas mudou o século, são outras coisas acontecendo agora, e que representam paixões similares ao fascismo, fascínios parecidos com o do fascismo e tal. Mas novamente o que me preocupa não é como a polícia trata as pessoas, é como as pessoas tratam a polícia, é como o brasileiro se identifica com isso e como a gente busca relativização da morte dessas pessoas, nunca virando a nossa revolta de verdade para o Estado que provocou isso, mas para as pessoas que fizeram algum para merecer isso de algum jeito. Então, eu estou bem preocupado assim, Pedro, para ser sincero.
Pedro Dória (Meio): Então, Bruno, vamos ver aqui, a gente já cruzou aqui agora a linha da 1 hora, deixa eu te fazer uma pergunta final. Como é que você lê o momento em que nós estamos vivendo? Eu não tenho ilusão de que essa seja uma pergunta simples, tá?
(gargalhada)
Bruno Torturra: Vai ser preciso mais 1 hora e 15 minuto.
(riso)
Pedro Dória (Meio): Mas o que eu quero dizer é: partindo-se do princípio de que o Supremo começou a agir concretamente, e está construindo um caso, e não depende do PGR para o TSE, por exemplo, para outras coisas depende. Mas, no TSE não depende. Existe dentro do Congresso Nacional tem um acompanhar diário das pesquisas de opinião, no momento que Jair Bolsonaro, isso tendência a acontecer, com o aumento de mortes, conforme Jair Bolsonaro, no momento que Jair Bolsonaro encostar os 15% de ótimo e bom, o processo de impeachment vai começar a circular. Quer dizer, é uma questão de tempo, mas movimentos existem.
Bruno Torturra: Sim.
Pedro Dória (Meio): O problema é que a gente não sabe quanto tempo que isso vai demorar para acontecer, porque democracia tem seus ritos e tem uma certa lentidão.
Bruno Torturra: Sim.
Pedro Dória (Meio): Você tem medo do que, cara? O que é que você acha que pode vir a acontecer que te causa mais angústia? [01:11:11]
A reação do STF, Congresso Nacional e o bolsonarismo: a pandemia e o futuro da Democracia brasileira
Bruno Torturra: É uma boa pergunta, tenho medo de que? Eu vou te falar, eu não sei do que… e adoraria materializar esse medo em alguma coisa tangível assim, alguma coisa clara. E eu acho que a pandemia coloca isso, já me colocou num estado de ansiedade tão forte. E é isso que eu falei no começo, antes de a gente começar a gravação, eu não estou dormindo direito! Eu estou ansioso para caralho, estou tomando antidepressivo, estou tipo…
Pedro Dória (Meio): Eu estou no Rivotril, se servir de consolo, (acha graça) e eu não costumo tomar.
Bruno Torturra: É, eu tomei Rivotril ano passado, em algumas ocasiões, aí eu vi que eu ia começar a tomar muito, aí eu parei porque (acha graça) vicia, Pedro. Então, toma cuidado.
Pedro Dória (Meio): Eu sei.
Bruno Torturra: Mas estou tomando remédio, estou tipo… e estou lidando com essa situação. Então eu não sei do que eu tenho medo. E quando você não materializa esse medo, ele vira um afeto também perigoso, porque aí você busca qualquer tipo de ordem. Eu acho que aí a pandemia coloca isso na sociedade brasileira também de algum outro jeito. Mas assim, (suspirou) como é que eu coloco isso? Sobre política mesmo, eu tenho medo desse processo de perda de popularidade do Bolsonaro custar mais tempo do que a gente pode suportar, como sociedade, e de uma certa convulsão social vinda da falta de liderança real que a gente tem no Brasil hoje, de todos os lados. Falta de vocalização que seja capaz de produzir algum tipo de calma, de sanidade, de orientação, e tal. E que protestos e brigas reais e violência real física possa começar a se difundir no Brasil, e aí começa a se tornar mais plausível um estado de sítio, uma adesão do Exército em termos de “vamos cumprir a nossa função de botar ordem na casa” e tudo mais, porque não é só mortalidade que vai aumentar logo, é depressão econômica real, o auxílio absolutamente insuficiente, muito desorganizado, e intencionalmente desorganizado. Aquela reunião ministerial, não sei nem o que dizer dela. A gente está na mão desse tipo de gente mesmo, desse tipo de… na minha opinião, de escória mesmo assim, da política e de cada disciplina que esses caras representam. Então, eu tenho medo disso, eu tenho medo de que as nossas… porque instituição, Pedro, instituição, ela é o que as pessoas fazem dela. Delas. Então, a gente não tem material humano muito bom no controle. Eu entendo que o Congresso Nacional está reagindo, mas eu tenho que me lembrar sempre que o Rodrigo Maia, ele não é exatamente um… (acha graça) assim, um grande… um homem de Estado, um cara corajoso. Ele é o Rodrigo Maia, hoje ele é um estadista porque é o que sobrou para a gente, mas ele não é uma liderança histórica brasileira. (riso) Não é um Osvaldo Aranha, não é um cara assim que pensa estrategicamente. Ele é o Rodrigo Maia, cara. E o Supremo Tribunal Federal está reagindo de fato, mas a gente também tem um Supremo Tribunal Federal desacreditado por grande parte da sociedade brasileira. O Alexandre de Moraes, na minha cabeça, há muito pouco tempo atrás, era um cara perigoso, estranho, ruim, e tal. Eu não sei do que é que eu tenho medo. Agora onde mais me pega, eu vou te falar, não é nem no processo histórico do curto prazo, é do médio e longo prazo. Eu estou vendo o que está acontecendo nos Estados Unidos e eu não acho isso pouca coisa. Eu acho que a gente está começando a entender outras formas de canalização assim, dessa… de que o projeto do Estado organizado dessa forma, da forma que a democracia nos foi oferecida, ela já está perdendo uma legitimidade real na população. Três Poderes, essa forma, representação em Congresso Nacional e Senado e Judiciário e Executivo, o que a gente chama de democracia é uma expressão da democracia, mas democracia, ela é um horizonte, ela é um destino, ela é uma outra coisa, que é distribuição de poder, de que autoridade precisa ser legitimada com o reconhecimento público de que a autoridade tem que ter lastro. E eu sinto que autoridade está perdendo lastro de muitas formas. E aí não é só no Estado, é na ciência, é nos jornalistas, é nos especialistas, é nas autoridades partidárias e sindicais e tal. Esse processo me dá um pouco de angústia, porque a pandemia, ela é só um ensaio para algo que está vindo por aí, que é crise ambiental, crise… ou o capitalismo não vai dar conta de resolver isso. Não vai! Esse processo de acúmulo de riqueza desse jeito, e aí que eu sou de Esquerda mesmo (acha graça), sou anticapitalista mesmo. Apesar de não saber o que é que é o pós disso, o que é que seria um sistema razoável não capitalista, mas eu acho que a gente botou a Economia num lugar sagrado e todo resto tem que se encaixar nisso. É disso que eu tenho medo, acho que não está sustentando mais. E essa perda de legitimidade do sistema, está flagrante. Flagrante. E aí é que eu não durmo bem. E é aí que eu não durmo bem.
Pedro Dória (Meio): Bruno Torturra, muito obrigado pela conversa!
Bruno Torturra: Obrigado você, Pedro.
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(fim da transcrição) [01:17:25]